Porto Alegre

Porto Alegre sempre foi terra estrangeira para mim. Visitava às vezes, quando ia ao cinema com alguma amiga ou com a escola, ou nos tempos de infância, quando ia patinar no antigo Clube Partenon. Nunca soube os nomes das grandes avenidas, e só sabia identificar a Ipiranga, porque sempre aparecia na televisão. Grande foi o meu entusiasmo quando, ao entrar para a faculdade, passei a ir todos os dias para a capital. Gostava dessa nova rotina, de caminhar no centro, de passar em frente ao Mercado Público, de pegar ônibus no camelódromo, de observar os coqueiros na Osvaldo Aranha. Gostava do barulho do trânsito, das salas de aula do Campus Centro, de olhar pela janela e ver aquela cidade que pra mim era grande, gigantesca, cheia dos mistérios.

Não é que eu odeie a minha cidade, não me entenda mal. Nunca fui o tipo de pessoa que sonha em deixar a cidade natal para trás e ir viver em algum lugar maior ou melhor. Gosto daqui, gosto da Aldeia. Mas Porto Alegre me chama, me visita em sonhos, é palco de minhas histórias, pano de fundo desta e de tantas outras.

A verdade é que Porto Alegre nos une, eu e ela. É lá que as nossas linhas temporais se cruzaram e se desfiaram. Não foi em nenhum outro lugar do mundo, mas aqui, no Porto dos Casais, na cidade que eu via na TV, na cidade da música que sempre toca no comercial, na cidade que, para mim, sempre foi território do desconhecido e da curiosidade.

Foi pelas ruas dessa cidade que andamos, foi por lá que nossos dedos se entrelaçaram. Posso agora mesmo fechar os olhos e percorrer as ruas da Cidade Baixa em direção ao apartamento antigo que ela dividia com a prima. Lembro do sol no rosto, das poças d’água no inverno, do coração acelerando a cada quadra vencida ao me aproximar da Lobo da Costa. Lembro da rua arborizada, do silêncio da vizinhança, como se todos ali estivessem testemunhando o que acontecia, como se fosse um segredo velado, guardado por todo o bairro, protegido do resto do mundo. Lembro de olhar pra cima ao chegar em frente ao prédio, de vê-la me esperando na sacada, imagem que se tornou a minha preferida durante tempos. Lembro do corredor velho, dos lances de escada, da porta ao final do corredor. Não existe ou existiu qualquer outro lugar tão nosso quanto aquele, mesmo que eu saiba que antes ele tenha sido dela e de outras pessoas. Não importa. Foi meu por um pequeno espaço de tempo, e será pra sempre nosso nas minhas lembranças.

Lembro da primeira vez, do meu nervosismo sentada na cama. Lembro dela fechando as cortinas azuis. Foi ali que fizemos tudo, conversamos sobre tudo. Foi ali que dividimos os sonhos, assistimos a filmes em preto e branco, brincamos de faz de conta. Lá fora, os carros passavam, os vizinhos iam a padaria. Da rede, na sacada, observávamos os cachorros e discutíamos a possibilidade de termos um no futuro. Planejávamos as nossas tarde na Redenção, nossos domingos no Guaíba. Deixamos decidido que ir assistir um filme no Guion seria a nossa tradição.

Porto Alegre estava inteira ali, naquele quarto, naquela sala, naquela cozinha. Porto Alegre tava no cheiro de pizza queimada, no cheiro de perfume importado que ela usava. Por muito tempo esse endereço foi meu, onde eu estava toda segunda, se deixasse toda terça também, e desejava estar em cada segundo de todos os outros dias. Lá eu tava segura, feliz, tranquila. Mas aquele lugar, embora nosso, não me bastava. Era andando de mãos dadas por aquele bairro velho que eu me realizava. Me regozijava com a ideia de sermos vistas, de verem que ela era minha, e que eu era dela também. Assim eu também fazia no Vale, no centro, onde quer que fôssemos.

A verdade é que Porto Alegre me doeu por algum tempo, depois que ela foi embora. Doía especialmente quando o ônibus passava pelo cruzamento da Osvaldo com a Venâncio. O Campus Centro se tornou insuportável, vazio, mesmo no começo do semestre quando todos os calouros perambulam por lá. Não existiu nenhum dia em que eu tenha passado pela João Pessoa que eu não tenha pensado nela. Penso até hoje, embora ela nunca venha a saber disso. Evitei o 343, evitei a CB, evitei as músicas que ouvíamos, mas eu não podia evitar Porto Alegre, muito menos a lembrança dela. Pra lá eu voltei todos os dias depois, e volto ainda. A cidade continuou dela por muito tempo, hoje já é mais minha. Ganhou outros significados, outros cheiros, outros gostos. A cidade nos uniu e continuou nos unindo, pois ela era o nosso bem em comum. Foi lá que duas pessoas que nasceram em cidades diferentes, distantes a mais de 130km, se encontraram e se amaram até não poderem mais.

Descobri a cidade de mãos dadas com ela. Envelheci em meses o que não tinha envelhecido em vinte anos. A cidade foi testemunha desse meu romance, e em suas ruas muitas vezes depois busquei pistas de que foi real, que existiu, que eu vivi tudo aquilo. Não acredito que existirá algum dia no qual Porto Alegre não me lembre dessa história. Espero que não, ao mesmo tempo que anseio que sim. Voltar lá é buscar comprovações, é atestar que vim, senti, amei, ao mesmo tempo que é viver, prosseguir, continuar com a rotina. Minhas memórias se confundem com as ruas da cidade, como se eu não pudesse falar de uma sem citar a outra. A cidade foi nossa, agora é minha. A cidade foi refúgio, ainda o é. A cidade fica, permanece, e se transforma em palco de tantas outras histórias a cada amanhecer e a cada pôr do sol.

Ando novamente por suas ruas. Respiro novamente os seus ares. Marco em suas avenidas os meus passos, e recebo de braços abertos o novo. Estou a espera do mistério que eu sei que só essa cidade é capaz de me trazer. Me abro para essa possibilidade, para viver nela outros acasos da vida, outras narrativas, quem sabe dessa vez em algum outro bairro que eu ainda não conheça.