[a solidão criativa]

Por Pedro Gabriel

8 / abril / 2014

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Não estou fazendo apologia à solidão, mas estar só permite criar mundos que jamais criaríamos se estivéssemos acompanhados. O terraço da casa dos meus pais é testemunha concreta desta história. Ele me viu aprontar tantas coisas. Ele foi a tela, o palco no qual pintei, bordei e interpretei toda a minha infância.

Um dia, fiz uma guerra nascer (hoje eu sei que toda guerra deve morrer!). De um lado, o Exército Insensível, comandado pelo maléfico General Cabeça de Balde, com sua multidão de soldados-tijolos enfileirados numa precisão militar, esperando a ordem superior para atacar. Nós, das Forças Amadas, não tínhamos comando, estratégia ou tática de guerrilha. O amor não é subordinável, costuma apenas seguir o coração. Por isso, às vezes, perde uma ou outra batalha – nunca a guerra! Nas trincheiras que cavei na montanha de areia destinada à construção de um muro de proteção coloquei meus soldados-paralelepípedos em posição de defesa. Eu, montado em meu cavalete quebrado, me sentia um verdadeiro herói da Cavalaria. Segurava um cabo de vassoura abandonado – que naquele momento eu jurava ser a ponta da minha espada. Eles atiravam com balas coloridas. E a gente revidava com uma chuvarada de bolinhas de gude. Depois de um intenso tiroteio, eles bateram em retirada. Vencemos! Quem brinca com a imaginação nunca sai derrotado. Nós hasteamos a bandeira branca – roubada no varal de roupa limpa – ainda molhada (seria o suor dos nossos heróis imaginários?). Sem mortos, sem feridos: salvaram-se todos! A criatividade não mata, não fere. A falta dela talvez…

No dia seguinte, quis ser astronauta. Aproximei duas camas – a minha e a da minha irmã – e me enfiei naquele vão. Coloquei um colchão no chão para voar com todo o conforto do mundo. O painel de controle ficou por conta do meu Game Boy. Se pintasse algum cometa inesperado no caminho, Mario Bros me ajudaria a saltar e a cumprir minha missão com êxito. Dois ventiladores na ponta de cada cama eram as turbinas da minha nave espacial (que potência!). Lençóis vermelhos e laranja simulavam a energia que me faria abandonar o quarto e alcançar o céu em uma fração de segundo. Para a minha segurança, improvisei um capacete feito com papelão e travesseiro. A tripulação – um Playmobil, dois Power Rangers e três girafinhas – está a postos. Aposto que estão com medo! Um walkie-talkie assegura a comunicação da nave com a torre de controle. Tudo está sob controle: podemos ligar os motores! É um pequeno espaço para mim, mas um grande passo para a criatividade.

Pedro Gabriel nasceu em N’Djamena, capital do Chade, em 1984. Filho de pai suíço e mãe brasileira, chegou ao Brasil aos 12 anos — e até os 13 não formulava uma frase completa em português. A partir da dificuldade na adaptação à língua portuguesa, que lhe exigiu muita observação tanto dos sons quanto da grafia das palavras, Pedro desenvolveu talento e sensibilidade raros para brincar com as letras. É formado em publicidade e propaganda pela ESPM-RJ e autor de Eu me chamo Antônio Segundo – Eu me chamo Antônio e Ilustre Poesia.

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Comentários

17 Respostas para “[a solidão criativa]

  1. Nossa que texto incrível …
    me lembrei da vez de quando era criança que tirei meu colchão, afastei as ripas da cama, coloquei um lençol no chão e de um passe de mágica meu quarto se transformou em um oceano e minha cama em um submarino e eu estava a caminho de Atlântida a cidade perdida.
    A criatividade pode ser sua melhor amiga, às vezes fico triste por não “liberta-la” mais vezes.

  2. Pedro Gabriel e sua incrível habilidade em fazer a emoção vir à flor da pele.

  3. Eu me chamo Janaina e sou sua fã! 🙂

  4. Com certeza, estar só permite criar mundos (!)

  5. Voce mudou a minha vida com os seus textos maravilhos que permite com que fassamos a mesma viajem que voce fez para cria-los. Te admiro demais, em meio ao misto de sua simplicidade e complexidade voce me faiz sonhar em seus textos, a coisa mais linda que um escritor pode fazer afinal!

  6. qdo ficava sozinha eu era bailarina, ginasta, professora, inventava td!!!

  7. Depois de tantos anos e alguns meses, percebi que a solidão não é a pior fase da minha vida. A pior fase é estar cheia de pessoas ao seu redor que não estão se importando com você, mas sim com o que você tem a oferecer a elas. O sofrimento causa efeitos que depois de vencida as batalhas te torna mais forte e mais sábio. Te faz pensar mil vezes antes de agir, e o melhor, a chance de você se arrepender do que fez é muito menor… Beijos e obrigada por ter aparecido na minha vida…

  8. Que texto lindo! Já faz tempo que a criança que eu era vive apenas nos momentos de solidão em mim… Mas não consigo resistir a esses momentos. Basta uma bolha de sabão, uma nuvem com um formato de diferente, uma careta engraçada e lá vem a menina que eu era me chamando pra brincarmos sozinhas. É um combustível para a vida…

  9. Que texto lindo! Já faz tempo que a criança que eu era vive apenas nos momentos de solidão em mim… Mas não consigo resistir a esses momentos. Basta uma bolha de sabão, uma nuvem com um formato diferente, uma careta engraçada e lá vem a menina que eu era me chamando pra brincarmos sozinhas. É um combustível para a vida…

  10. Texto simplesmente incrível! Serve de inspiração não só na escrita mas também na vida, mal posso esperar para ler mais textos.

  11. Que texto fantástico, bateu bem fundo na minha infância, e despertou uma nostalgia que a muito eu não sentia. Me identifiquei demais. Parabéns pelo seu dom Pedro Gabriel. Que continue sempre nos deleitando com o seu talento. 🙂

  12. seu próximo livro deveria ser com esses textos, pois todos eles nos trazem uma nostalgia de situações vividas.

  13. O problema é a realidade que aparece como infiltração no universo criado e mais dia, menos dia, de repente, o seu mundo particular vai pelos ares e você se vê ainda mais inundado pela carência de algo que nunca existiu se perguntando se isso um dia existirá ou ao menos uma centelha do mesmo. Prazer não fortuito.

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