À espera de um recomeço

Por Pedro Gabriel

30 / junho / 2020

A última vez que saí de casa foi no dia 17 de março. Eu tinha 35 anos e os cabelos curtos. Meus passos ainda não sabiam a dimensão de tudo o que está acontecendo com esse mundo. Assim que se tocaram, eles imediatamente se entocaram e resolveram nunca mais se arriscar fora do espaço existente além das grades do Edifício Grace.  

Michele me avisa que passamos o outono inteiro dentro do nosso apartamento. Não tinha me atentado a este fato. Foi um espanto! Claro que eu sabia que estávamos há meses isolados fisicamente das pessoas que amamos e dos lugares que gostamos. Mas quando nomeamos o que estamos vivenciando, os sentidos se redimensionam, parecem ganhar outra importância. Falar estamos há 3 meses dentro de casa – por mais que signifique exatamente a mesma coisa soa diferente do que dizer passamos o outono inteiro sem pisar na rua. Nesse caso, o impacto maior. Assusta mais. Não? A mim sim.

Passamos o outono inteiro sem pisar na rua. Logo o outono! A estação que eu mais amo no ano! Não pude pisotear em nenhuma folhinha seca sequer no meu percurso rotineiro até a livraria na avenida Moema. Aquele barulho (imagine a onomatopeia de uma folha seca sendo esmagada) é terapêutico. Equivale ao plástico-bolha dos presentes que chegam (chegam?) pelos Correios. Olha aí, a humanidade sempre buscando a sensação de paz na destruição de algo sem forças para revidar… 

Particularmente, tenho uma queda pelo outono porque gosto do calor, mas não tanto. Porque amo o frio, mas não tanto. Porque amo a chuva, mas não tanto. Porque amo a ventania, mas não tanto. Porque gosto dos dias e das noites com a mesma duração, mas não tanto. Porque gosto do tom amarelado, mas não tanto. Porque gosto da solidão, mas não tanto. Porque gosto dos ciclos que se encerram, mas não tanto. Porque gosto dos recomeços, mas não tanto. Porque… Chega! Já tô tonto de tanto tanto

Passamos o outono inteiro sem pisar na rua. Essa é a nossa realidade. Uma estação inteira estacionada no nosso apartamento. Como se tudo estivesse à espera de um recomeço. Outono é tempo de mudança, de renovação. Queda de folhas, frutos, colheita… Mas, aqui dentro, não há nada a colher. Talvez poeira, caspa, unhas, migalhas de pão – sobras do café da manhã – que se espalham pelo chão, debaixo da mesa da sala, bem perto dos meus pés. O outono mora com a gente há 3 meses e não se oferece sequer para ajudar no condomínio, pagar uma conta de luz, gás ou, sei lá, uma pizza aos sábados?

No quarto de dormir, uma leve infiltração começa a despertar. O concreto também guarda o peso da sua aflição em estado líquido. As lágrimas não estão em quarentena. Elas podem sair sem pena, cair a qualquer momento desses olhos emparedados. 

No escritório, o papel de parede se solta da superfície no canto inferior direito. A cola aos poucos perde seu efeito. Ela parece querer desrespeitar as recomendações da Organização Mundial da Saúde e descolar uma fuga para revestir a rua. Ela também parece estar cansada de ficar trancafiada. Quem não está? 

Na cozinha, o grande susto de uma pequena explosão! O micro-ondas deu curto-circuito após quatro anos de contribuição ininterrupta descongelando sopas, esquentando lasanhas e aquecendo jantares preparados com as sobras do almoço do dia anterior. Sinto que as coisas vão pifando com mais frequência quando passamos a conviver mais tempo com elas. Numa rotina normal, os eletrodomésticos quebram e a gente mal percebe. No amor também é assim?

Até fiquei mais velho nesse período. Já não tenho 35. Rolou uma festa high-tech, com direito a brinde no Zoom: 40 minutos de muito amor com família e amigos. Viva a tecnologia! Viva a comemoração digital! Viva a passagem de tempo virtual… Opa, opa, pera lá… O tempo só passa realmente, meu jovem. Portanto, é real: envelheci!

Gilberto Gil disse recentemente numa live: Quem não morre, envelhece. Outras pessoas já disseram algo semelhante, mas quando Gil diz, as palavras nos acertam de forma diferente. Aliás, nascemos no mesmo dia – 26 de junho. Em décadas diferentes, claro. Gosto de saber que, de certa forma, envelheço no mesmo ritmo que Gil – o artista que mais admiro. Ele fez 78 e parece tão mais moço do que eu. 

Da próxima vez que eu sair de casa, terei 36 anos e os cabelos mais ou menos na altura dos joelhos. O que esperar desse inverno?

Pedro Gabriel nasceu em N’Djamena, capital do Chade, em 1984. Filho de pai suíço e mãe brasileira, chegou ao Brasil aos 12 anos — e até os 13 não formulava uma frase completa em português. A partir da dificuldade na adaptação à língua portuguesa, que lhe exigiu muita observação tanto dos sons quanto da grafia das palavras, Pedro desenvolveu talento e sensibilidade raros para brincar com as letras. É formado em publicidade e propaganda pela ESPM-RJ e autor de Eu me chamo Antônio Segundo – Eu me chamo Antônio e Ilustre Poesia.

VER TODAS AS COLUNAS

Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *