De onde vêm as personagens?

Por Maurício Gomyde

5 / junho / 2015

Su Blackwell Studio “Alice: A Mad Tea Party” (2007)

Su Blackwell Studio “Alice: A Mad Tea Party” (2007)

De onde vêm as personagens de seus livros?

Se fosse possível compilar todas as entrevistas com escritores já realizadas ao redor do planeta, desde o primeiro jornal de que se tem notícia (a Acta Diurna, na Roma antiga — Valeu, Google!), provavelmente essa figuraria entre as mais-mais no ranking das perguntas mais perguntadas. Algo como uma pequena obsessão das pessoas por desvendar se existe um lugar mágico dentro do cérebro dos escritores onde supostamente habitam personagens prontas, apenas à espera da carta de alforria que lhes garantirá a liberdade de voar até páginas em branco e mentes de leitores.

No meu caso, a resposta é diferente a cada vez que me fazem tal pergunta. Sendo bem sincero, não faço muita ideia de onde elas vêm. Só sei que, nesse assunto, posso me considerar muito mais darwinista do que criacionista. Não represento nem de longe a figura onipotente, que pega um monte de barro, faz um movimento com a mão e… Voilà, saindo do forno uma personagem quentinha, à minha imagem e semelhança! Minhas personagens sofrem um processo contínuo de evolução, como se nascessem personagens-bactérias, crescessem personagens-primatas e amadurecessem personagens-pessoas, finalmente dotadas de alegrias, angústias, vontades e objetivos críveis.

Há uma frase de que gosto muito (mas essa nem o Google me ajudou a dizer a autoria): “Ninguém vai ler o livro que você não lançou”. Isso significa que, até o último segundo antes de o livro ser remetido à gráfica, ainda há tempo de errar. A personagem pode nascer, crescer, morrer, nascer de novo, voltar para o útero da mãe, pular de uma cachoeira e ser salva por outra personagem ou, ainda a tempo, ir para o corredor da morte literário e nem aparecer na história. E aí reside uma parte bacana da construção de narrativas: as personagens que remanescem são aquelas pelas quais o autor mais se afeiçoou. Aqui, novamente uma intervenção darwiniana no processo: sobrevivem os melhores; os fracos ficam pelo caminho.

Personagens são como filhas de autores, e confesso que eventualmente sou acometido por um súbito complexo de Electra invertido e me apaixono por uma ou outra. E isso talvez seja fruto do meu desejo de encontrar determinadas características em pessoas reais. O problema? Acabam soando perfeitinhas demais… Em geral, são as tais que sucumbem à pena de morte antes do envio à gráfica, encerrando precocemente o estranho caso de amor. Que Deus as tenha!

No fim das contas, acho que o importante mesmo não é de onde vêm, mas para onde vão as personagens. Não um lugar físico, mas o emocional que fale direto ao peito dos leitores. Pois que sejam amadas, ou odiadas, se assim desejar o escritor. Afinal de contas, a literatura é feita de boas histórias, e boas histórias não existem sem grandes personagens. Venham de onde vierem.

Maurício Gomyde é autor de Surpreendente!. Paulista de nascimento, mas considera que a paixão pelo céu mais belo do mundo alterou seu DNA para brasiliense. Tem música no sangue, é baterista, cinco romances publicados e uma mochila cheia de histórias para contar. O primeiro livro pela Intrínseca sai em 2015.
Maurício escreve, quinzenalmente, às quartas.

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Comentários

14 Respostas para “De onde vêm as personagens?

  1. Essa é uma pergunta que eu, como leitora, sempre me faço durante a leitura dos livros. Mais uma vez, gostei do jeito que o autor colocou sobre o tema. <3

  2. Muito bom!!! A comparação Darwinismo x Criacionismo foi muito bem sacada e é totalmente aplicável ao processo de construção de personagens. Um brinde à boa leitura!

  3. Mai um belo texto do escritor Maurício Gomyde. Quando leio um livro cuja personagem me encanta, absorvo parte dela para que de tempos em tempos ela me traga aquela gostosa sensação que a literatura é capaz de nos fazer sentir: ser o criador.

  4. Personagens são como filhas de autores. Sinto como se fossem meus filhos também em alguns livros. Dificil abandonar no fim da história.

  5. Muita humildade sua, Maurício! Suas personagens maravilhosos vêm dessa sua enorme capacidade de ler o mundo através de um olhar sensível e criativo. Com suas personagens, você traz ao mundo criaturas encantadoras, que sempre nos deixam uma marca ao final de mais uma boa história.

  6. Boa resposta!
    Tem personagens que são tão bons, que quando acaba o livro, sentimos que perdemos alguém.

  7. Aaaaah! Muito bom esse texto!!! É a pergunta mais repetida por mim tb: “de onde ele tirou essa figura?”.

  8. Quando o personagem é bom a gente nunca esquece. os escritores são pessoas com muita criatividade mesmo, porque conseguir que a gente se apaixone por eles é um dom. Estou curiosa para ler o novo livro do Maurício porque ele sempre tem ótimos personagens.

  9. Mauricio, sempre tive curiosidade de saber acerca da origem de seus personagens, que já me levaram do riso ao choro. Adorei o texto!

  10. O Mauricio não muda nunca : é sempre muito sério nas suas considerações mas não deixa de dar uma pitada de bom humor , o que torna a leitura de seus textos verdadeiramente agradável. Também me fico a escarafunchar, em que pese agora ele ter dado uma excelente explicação : de onde ele tirou tal personagem ??

  11. Muito bom texto! Uma boa narrativa, uma forma de prender a atenção do leitor, uma boa história, são características do bom escritor. Parabéns! Maria José (Grupo Cotovias)

  12. Ótima resposta, Maurício. Existem personagens que eu não me pergunto de onde veio, como gostaria de ter como amigo (a). Ágora sem querer puxar saco, Maurício Gomyde é o tipo de escritor que eu poderia ler até a lista de supermercado (essa frase tá virando clichê já). Adoro o tom de humor que ele usa em seus textos/histórias. Se não me engano, já disse em uma resenha que ele tem um jeito única de escrever. Se ainda não, pode apostar que vou escrever isso hehehe.

  13. A construção das personagens é algo que sempre suscita a curiosidade dos leitores. Excelente artigo!

  14. Muito interessante este artigo! Fala da “construção” da personagem – o que parece algo tão concreto, racional – e, ao mesmo tempo, cria um encantamento em torno do seu surgimento: o autor vai revelando todo o seu envolvimento e a emoção do processo. O fecho é brilhante!

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