[A GOURMETIZAÇÃO DA MEMÓRIA]

Por Pedro Gabriel

26 / maio / 2015

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Não sei quem aí vai se lembrar do bom (bom?) e velho disquete. Aquele troço quadrado, criado nos anos 1970 e constantemente melhorado (melhorado?) até se popularizar na década de 1990 com sua versão compacta e a inacreditável capacidade de armazenamento de 1.44MB. Esses dias bateu uma saudadezinha dessas mídias que me acompanharam por boa parte da minha adolescência. Era tão bom fingir que o arquivo estava corrompido e culpar o professor por não ter conseguido abrir o trabalho em casa  (crianças, não façam isso em casa) (professores, peço sinceras desculpas).

Dizem até que Deus tentou formatar o mundo com uma espécie de disquete. Mas Ele, até Ele!, se estressou algumas vezes quando aparecia aquela mensagem do Windows 95 a.C: “O disquete inserido não está formatado. Deseja formatá-lo?”. Nessa hora até Deus rezava. O chato de estar no topo da cadeia divina é não ter a quem recorrer nas horas de desespero. Até pouco tempo, meu imposto de renda ainda era guardado em disquetes. Quem nunca se declarou e recebeu de volta do contador um disquete com todas as informações sobre suas movimentações financeiras? E ainda dizem que antigamente era melhor se declarar, que as pessoas amavam mais. Fala sério! Você se declara e ganha um mísero disquete??? Ai, ai, não se fazem mais declarações como atualmente. Hoje, tudo acontece nas nuvens. Já sei quanto o governo vai me confiscar (para não usar um verbo deselegante) com apenas um clique, olhando pela janela desse céu virtual.

Tenho um dado tão interessante quanto inútil: se ainda estivéssemos na era do disquete, o Windows 7, por exemplo, precisaria de nada mais nada menos do que 2.133 disquetes para ser instalado. Não, não me dei o trabalho de calcular. Vi no Google. Fico imaginando quantos disquetes seriam necessários para armazenar a discografia do Pink Floyd, o copidesque da saga Harry Potter, a letra de “Faroeste Caboclo” e a Bíblia interpretada pelo Cid Moreira. Seria um excelente exercício para testar a nossa fé. Naquela época, todo mundo era um pouco técnico em informática, engenheiro de computação, especialista de sistemas. Éramos todos hackers de inutilidades. E tudo isso com menos de treze anos de idade. #gênio. Agora que temos toda a tecnologia do mundo na ponta dos dedos, por que só usamos nossas mãos para digitar bobagens?

Hoje, o disquete é só uma fotografia antiga na galeria do Google Images. Caiu em desuso. As mídias de armazenamento de maior capacidade, como os cartões de memória, os pen-drives, o CD-R, o CD-RW, o DVD, o HD externo ou o cloud computing, foram se alternando no poder dessa luta silenciosa. O darwinismo também invadiu o mundo dos bytes. Os computadores nem são mais fabricados com o drive de leitura de disquete (computador? O que é isso?). Estamos assistindo a uma verdadeira gourmetização da nossa capacidade de memorizar o que, teoricamente, era para ser inesquecível. Novas mídias envelhecem cada vez mais rápido. Salvar nas nuvens pode ter se tornado ultrapassado enquanto escrevo esse texto. Vemos arquivos cada vez maiores em dispositivos cada vez menores. Graças à tecnologia, conseguimos acumular virtualmente cada vez mais memória, mas isso traz resultados que eu gostaria de esquecer: vivenciamos cada vez menos os momentos reais.

Queria reencontrar um velho disquete e perguntar o que ele acha do futuro. E saber se ele não se cansa de ser um porta-copos na mesa de trabalho de um designer prepotente. Ou se ainda sonha em voltar ao estrelato como o vinil — que já teve sua glória, seu esquecimento e agora vive seu revival. Ou se ainda espera que alguma blogueira diga que ele é chique, tem glamour, é retrô-vintage-cult-fashion e será o must do próximo ano. Ou se ainda deseja que algum médico-pop apareça num programa de TV aberta e diga que o disquete ajuda a prevenir o câncer de pele se for batido no liquidificador com maca peruana e quinoa. Ou se ainda tem fé que, em alguma praça na zona sul do Rio de Janeiro, um hipster esteja pensando em uma nova utilidade. Quem sabe um adereço para sua barba nórdica? Fora isso, querido disquete, assim como você, eu também vejo minha esperança ficar obsoleta. Mas saiba que cada megabytizinho valeu a pena e que a minha saudade não cabe mais nos seus 1.44MB.

Pedro Gabriel nasceu em N’Djamena, capital do Chade, em 1984. Filho de pai suíço e mãe brasileira, chegou ao Brasil aos 12 anos — e até os 13 não formulava uma frase completa em português. A partir da dificuldade na adaptação à língua portuguesa, que lhe exigiu muita observação tanto dos sons quanto da grafia das palavras, Pedro desenvolveu talento e sensibilidade raros para brincar com as letras. É formado em publicidade e propaganda pela ESPM-RJ e autor de Eu me chamo Antônio Segundo – Eu me chamo Antônio e Ilustre Poesia.

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Comentários

7 Respostas para “[A GOURMETIZAÇÃO DA MEMÓRIA]

  1. Brilhante, Tonho! (Desculpa pela liberdade) Lindo e bem humorado. Adorei!!!

  2. Pedrinho e seus textos revival. Sabe o que eu gostaria de encontrar o precursor das redes sociais, o caderno de perguntas. Aquele que tinha várias perguntas e todos os seus amigos tinham que responder. A genteaí ficava beijou quem, quem gostava de quem. Era muito legal. Será que existia esse caderno lá na África, Pedro? Poderiam gourmetizar o caderno de perguntas.

  3. Corrigindo o texto acima.
    A gente ficava sabendo quem gostava de quem, quem beijou quem…

  4. Inacreditável. Não tenho o que dizer se não Obrigado pelo texto.
    Aliás, esse último parágrafo me remeteu a Jennifer Egan, em A Visita Cruel do Tempo.
    Quando vai ser sua vez de nos agraciar com um romance, Pedro?
    Espero ansiosamente. Um grande Abraço

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