Notícias

Os segredos que guardamos: como um livro mudou o curso da humanidade

10 / dezembro / 2019

Em Os segredos que guardamos, Lara Prescott mostra como um livro pode alterar o curso de uma guerra e derrubar um regime.

Durante a década de 1950, quando o machismo podia ser ainda mais explícito do que hoje, Sally, Irina e Olga se tornam as principais responsáveis por transformar Doutor Jivago, um clássico da literatura russa do século XX, na emblemática obra que é hoje. Em Os segredos que guardamos, Lara Prescott parte de uma missão real da CIA para tecer as histórias das três, unidas pelo poder de mudança da literatura.

Na Segunda Guerra Mundial, mulheres eram frequentemente usadas como espiãs por sua capacidade de se infiltrar sem causar alarde. Os homens as viam como inofensivas, e elas usavam isso a seu favor arrancando informações cruciais para a missão. Mas, com o fim da guerra, as hábeis espiãs foram empurradas para o serviço burocrático, muitas vezes atuando como secretárias para os homens com quem trabalharam lado a lado.

Quando a glamorosa e experiente Sally é convidada a voltar a campo em uma ousada missão da CIA, ela não pensa duas vezes. Mas antes deve treinar a novata Irina, uma datilógrafa filha de imigrantes russos que se transforma em uma preciosa agente. O plano era simples: imprimir no exterior Doutor Jivago, de Boris Pasternak, em russo e contrabandear exemplares da obra que teve sua publicação proibida na União Soviética por ir contra a ideologia do Estado.

Apesar de todo o potencial revolucionário, Doutor Jivago é também uma brilhante história de amor. A inspiração por trás de Lara, a icônica heroína da trama, é Olga Ivinskaia, musa de Pasternak. Os dois mantiveram um caso por décadas, uma relação intensa que sobreviveu à passagem do tempo, às ameaças de um regime autoritário e até aos anos de Olga em um gulag, os campos de trabalho forçado, para o qual foi enviada por contribuir na escrita do livro. Pelos olhos de Olga, conhecemos de perto a tortuosa jornada que a obra enfrentou até ser publicada.

Assim, mulheres de ambos os lados da Cortina de Ferro protagonizam esta obra que mostra que, embora a história seja escrita pelos vencedores, é nos bastidores que o destino do mundo é forjado. Amantes, espiãs, datilógrafas. Fortes e corajosas, essas personagens ganham vida nestas páginas e são exemplos de que determinados segredos não devem ser guardados.  

Enviado em novembro no intrínsecos, o clube do livro da Intrínseca, e escolhido por Reese Witherspoon para seu clube de leitura, Os segredos que guardamos é uma história de espionagem contra a censura, seja ela imposta pelo Estado ou pela sociedade patriarcal e preconceituosa.

 

Leia um trecho do livro:

 “Datilografávamos cem palavras por minuto e nunca pulávamos uma sílaba sequer. Cada uma de nossas mesas idênticas era equipada com uma máquina de escrever Royal Quiet Deluxe com estojo verde, um telefone de disco Western Electric preto e uma pilha de blocos de anotação amarelos. Nossos dedos voavam pelas teclas. As batidas eram constantes. Parávamos apenas para atender ao telefone ou dar uma tragada em um cigarro; algumas conseguiam fazer as duas coisas sem perder o ritmo.

Os homens chegavam por volta das dez. Uma a uma, eles nos chamavam a seus escritórios. Sentávamos em cadeiras pequenas encostadas em um canto enquanto eles sentavam atrás de suas mesas enormes de mogno ou caminhavam pelo carpete falando com o teto. Ouvíamos. Registrávamos. Éramos a plateia para um de seus memorandos, relatórios, exposições, pedidos de almoço. Às vezes eles esqueciam que estávamos ali, e descobríamos muito mais: quem estava tentando neutralizar quem, quem estava tentando obter vantagem, quem estava tendo um caso, quem estava em alta e quem estava em baixa.

Às vezes, se referiam a nós não pelo nome, mas pela cor do cabelo ou tipo de corpo: Loirinha, Ruiva, Peitão. Também tínhamos apelidos secretos para eles: Apalpador, Bafo de Café, Dentuço.

Eles nos chamavam de garotas, mas não éramos garotas.

Chegamos à Agência após ter estudado em Radcliffe, Vassar, Smith. Éramos as primeiras filhas de nossas famílias a conquistar diplomas. Algumas de nós falavam mandarim. Algumas sabiam pilotar aviões. Algumas manipulavam um Colt 1873 melhor do que John Wayne. Mas tudo o que nos perguntaram ao sermos entrevistadas foi: “Você sabe datilografar?” Dizem que a máquina de escrever foi feita para as mulheres — que para fazer as teclas cantarem é necessário o toque feminino; que nossos dedos finos são adequados para o instrumento; que, enquanto os homens reivindicam carros, bombas e foguetes, a nossa máquina é a de escrever.

Bem, não temos certeza disso. Mas o que admitimos é que, à medida que datilografávamos, nossos dedos foram se tornando extensões de nossos cérebros, sem espaço entre as palavras que saíam da boca daqueles homens — palavras que eles nos diziam para depois esquecer — e nossas teclas pintando o papel. E, considerando isso tudo, a mecânica da coisa toda, é quase poesia. Quase.

Mas será que dores de cabeça, punhos doloridos e má postura eram nossa aspiração? Era com isso que sonhávamos na escola quando estudávamos duas vezes mais do que os garotos? Era o trabalho burocrático que tínhamos em mente ao abrir os envelopes pardos espessos que continham cartas de aceitação das faculdades? Ou que pensávamos que esse era o nosso destino à medida que nos sentávamos naquelas cadeiras brancas de madeira no meio do auditório, vestindo nossas becas, recebendo os pergaminhos enrolados que garantiam que estávamos qualificadas a fazer muito mais?

A maioria de nós via o trabalho de datilografia como temporário. Jamais admitiríamos em voz alta — nem mesmo umas para as outras —, mas muitas de nós acreditávamos que seria o primeiro passo para alcançar o que os homens conseguiam assim que saíam da faculdade: cargos de oficiais, nossos próprios escritórios com luminárias cujas luzes nos favorecessem, tapetes felpudos, mesas de madeira, nossos próprios datilógrafos registrando nosso ditado. Considerávamos aquele trabalho um início, não um fim, apesar de tudo o que ouvimos a vida inteira.

Outras mulheres chegavam à Agência não para iniciar suas carreiras, mas para encerrá-las. Remanescentes da OSS, onde tinham se tornado lendas durante a Guerra, eram relíquias relegadas à datilografia ou ao departamento de registros ou a alguma mesa em um canto sem nada para fazer.”


Saiba mais sobre os livros

Comentários

2 Respostas para “Os segredos que guardamos: como um livro mudou o curso da humanidade

  1. Estou com uma dúvida a respeito do livro. Lara Prescott é autora do livro ou a personagem principal? Ela é norte-americana? Olga Inviskaya é somente personagem do livro Doutor Jivago? O livro utiliza o recurso de metalinguagem?

  2. Oi, Gustavo! Lara Prescott é a autora de “Os segredos que guardamos”, e, sim, ela é norte-americana. Olga Ivinskaya é uma personagem do livro, inspirada em uma pessoa real de mesmo nome, amante de Boris Pasternak, o autor de “Doutor Jivago”. O livro é um romance livremente inspirado em fatos reais, sem metalinguagem 😉

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *