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A segunda vinda de Deuses Americanos

18 / abril / 2019

Por Bruno Grandis*

Muitos adjetivos já foram usados para descrever Deuses americanos, mas acredito que o que melhor define a essência do livro é: estranho. Talvez essa não seja a melhor forma de apresentar um mundo novo para um desavisado leitor, mas essa é inegavelmente a verdade.

Poucos autores teriam uma ideia como: “E se deuses antigos tivessem vindo para a América junto com os imigrantes e se alimentado das crenças do povo?”, acrescentariam à história uma guerra com os “novos deuses” e concluiriam que isso daria uma saga épica de fantasia urbana. Mas também, poucos autores são como Neil Gaiman, o cara que já imaginou toda uma hierarquia fantástica pelos subterrâneos do metrô de Londres (Lugar nenhum), revolucionou os quadrinhos (Sandman) e ainda nos fez olhar para as lembranças da infância com outros olhos (O oceano no fim do caminho).

Essa estranheza de Deuses americanos ficou ainda mais clara quando, por anos, diversos produtores e estúdios tentaram traduzir a visão de Gaiman para a TV. A HBO chegou a ensaiar uma adaptação, mas acabou deixando a série em um limbo de produção, até finalmente o canal por assinatura Starz se encarregar da primeira temporada de American Gods, que estreou em 2017, com direito a muito sangue, bizarrices e esposas-mortas-revividas-por-acidente-graças-a-uma-moeda-mágica-jogada-em-seu-túmulo (eu falei que a história era estranha!).

Antes da estreia, muitos se perguntavam por que adaptar um único livro em  temporadas de uma série de TV. Deuses americanos não chega nem perto do tamanho dos muitos volumes de Game of Thrones ou A Roda do Tempo, que também deve ganhar uma adaptação televisiva. Mas o que a obra de Gaiman não tem em quantidade compensa em sua densidade incomparável de acontecimentos.

Em um único volume de mais de quinhentas páginas, somos introduzidos a diferentes divindades, panteões, conflitos, resoluções e reviravoltas. A obra é tão rica que seria simplesmente impossível — e contraprodutivo — resumir s saga de Shadow Moon e do sr. Wednesday em poucos episódios. De forma similar, a versão quadrinhos da obra também foi dividida em diversos volumes.

Por isso, a primeira temporada tratou de apresentar o rico universo concebido por Gaiman. Apesar da palavra “deus” denotar certa importância e poder, na série eles são bem mais “humanos” do que imaginamos. Os deuses antigos são muitas vezes caquéticos, sujos, imprestáveis. Suas vidas na América se tornaram miseráveis por conta de uma sociedade que os esquece um pouco mais a cada dia.

Qualquer entidade rejeitada precisa de um inimigo em quem botar a culpa pelo fim dos dias de glória, e na escala divina de Gaiman esses inimigos são a mídia, as drogas, a tecnologia, entre outros, sempre com sua petulância jovial. A série faz uma releitura muito interessante desse “embate” entre os deuses antigos e novos, mostrando  como os deuses antigos estão dispostos a tudo para se manterem relevantes, chegando a mudar de lado e apelar as práticas dos novatos, como armas de destruição em massa e aplicativos.

A segunda temporada da série, que estreou em março deste ano, dá continuidade às linhas narrativas iniciadas na primeira e se aprofunda na história. Já no começo os fãs do livro se deparam finalmente com a glória e a estranheza da House on the Rock , casa de bizarrices perdida em pleno coração dos Estados Unidos e também ponto de encontro das divindades do Velho Mundo.

Como o sr. Wednesday explica, os verdadeiros locais de fé na América não são templos ou igrejas — meras cópias das ideias que os colonizadores europeus trouxeram consigo. A fé americana está melhor representada nas atrações de beira de estrada, que encontramos por acaso, quando viajamos pelo Novo Mundo. Nesses locais, nunca sabemos o que realmente pode acontecer e sempre saímos transformados por sua irrelevância ou bizarrice.

Ao dividir a obra-prima de Gaiman em temporadas, temos tempo para explorar facetas desconhecidas dos personagens e também entender um pouco de seus dilemas e motivações. O passado de Shadow, por exemplo, que na primeira temporada não recebeu tanto destaque, ganha merecido espaço.

Grandiosa e vibrante, American Gods é uma ótima forma de os fãs matarem a saudade da obra-prima de Gaiman, mas também é uma série para qualquer pessoa que goste de uma boa história (com um toque mais do que bem-vindo de excentricidade).

Os deuses estão esperando.   

*Bruno Grandis é uma dessas pessoas que fazem de tudo um pouco nesse mundo, entre podcasts, publicidade e outras coisas estranhas no geral, setenta por cento disso aprendido quando era assistente de mídias sociais na Intrínseca.


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