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Boy Erased: A luta de Garrard Conley contra a cura gay

27 / fevereiro / 2019

Por João Lourenço*

Garrard Conley, autor de Boy Erased, e Lucas Hedges, ator que o interpretou na adaptação cinematográfica do livro

Em 17 de maio de 1990, a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da lista internacional de doenças. Ou seja, ser gay deixou de ser considerado um transtorno ou alguma perturbação à saúde.

De lá para cá, passaram-se quase 30 anos, chegamos ao século XXI e, por mais absurdo que seja, a homossexualidade continua incomodando muita gente. Pior. Os incomodados seguem afirmando que se trata de doença e, sendo “doença”, pode ser “curada”. Só nos Estados Unidos, pesquisas mostram que mais de 700 mil pessoas já passaram por algum “tratamento” de terapia reparativa ou de conversão — termos pomposos para a famigerada “cura gay”. E quase metade desse número é formado por adolescentes. Além disso, a Associação Americana de Psicologia elaborou uma lista abrangente dos males causados por esse tipo de programa: ansiedade, confusão, depressão, desesperança, perda da fé e, até mesmo, suicídio.

Garrard Conley foi um desses adolescentes. Sobreviveu à experiência e, para ajudar pessoas que enfrentam situações parecidas, escreveu Boy Erased. No livro de memórias, ele relata com detalhes o período em que frequentou um dos maiores e mais controversos programas de reorientação sexual dos Estados Unidos, o “Amor em Ação” (AEA).

Vindo de uma família de classe média que vivia em uma cidade conservadora e religiosa no interior do Arkansas, Conley passou grande parte da infância dentro de uma igreja Batista, onde o pai era um dos pastores. O autor teve infância e adolescência normais, sem sofrer nenhum tipo de bullying na escola. Os problemas começaram quando ele foi para a faculdade. Longe dos pais, ele se sentiu livre para ser quem era e logo se envolveu com um colega de classe, que também vinha de uma família religiosa. O jovem estuprou Conley e, temendo ser denunciado, ligou para os pais do autor se passando por um coordenador da faculdade e o “tirou do armário”.

A primeira reação de Conley foi negar a acusação. Mas, sob pressão, resolveu confessar que sentia atração por homens. O pai convidou pastores e ministros da igreja para decidir o futuro do filho. E a decisão foi a pior possível: enviá-lo para um polêmico programa chamado “Refúgio”, que reúne adolescentes e adultos que sofrem de “vícios sexuais”.

Conley viajou para o estado do Tennessee, sede do AEA, com a mãe. Lá, recebeu inúmeras instruções: qual hotel deveriam ficar hospedados durante o tratamento, quais roupas Conley poderia usar, qual seria o seu corte de cabelo e até a altura da barba. No AEA, a maioria dos funcionários é formada por “gays convertidos”, pessoas sem formação acadêmica ou experiência em tratamentos psicológicos. Conley então teve aulas de como “ser homem”: exercícios de postura, voz, atividades esportivas etc. Com interpretações equivocadas da Bíblia, o lugar é movido à tortura psicológica, induzindo os “pacientes” ao medo, arrependimento e, por fim, à tal “conversão”. Os participantes também são forçados a assistir a filmes pornográficos.

Durante esse processo, a relação de Conley com a mãe foi fundamental para mantê-lo são e conservar alguma esperança. Ao contrário do pai, ela não era tão rígida e estava disposta a entender a orientação sexual do filho. No tempo livre, por exemplo, os dois compartilhavam livros e discutiam títulos com teor homossexual, como O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde.

A maioria dos “pacientes” do AEA precisa ficar pelo menos três meses em tratamento. Mas, com a ajuda da mãe, que enfrentou o marido, Conley permaneceu no lugar por apenas duas semanas. Hoje, ela lembra o período como “o ano em que fomos abduzidos por alienígenas”.

Por vários motivos, Boy Erased parece mais um livro de ficção do que de memórias. Conley escreve com ritmo fluido e opta por contar a sua história de forma não linear, utilizando linguagem clara e objetiva, além de abordar com leveza as passagens mais dolorosas. As técnicas utilizadas pelo AEA e os diálogos dos funcionários são tão absurdos que, às vezes, tudo beira o inverossímil. E, assim como na ficção, nem tudo é preto ou branco. Conley oferece ao leitor histórias secundárias sobre os personagens, principalmente sobre os pais, em uma tentativa de torná-los merecedores de empatia e compaixão.

Os pais de Conley, Hershel e Martha, representam o típico casal americano. Eles se conheceram e casaram-se muito jovens. Hershel era quarterback quando conheceu Martha, líder de torcida. Antes de ser ordenado como pastor, Hershel gerenciava uma concessionária de carros. Foi com o pai que Garrard aprendeu a se expressar com confiança e charme. No entanto, Garrard conta, por exemplo, episódios de violência que marcaram a vida do pai: Hershel presenciou a mãe apanhar do pai diversas vezes. Em relação à mãe, ele a apresenta como uma mulher engraçada e espontânea. São diversos os episódios que retratam o amor entre a família — relação que se desgastou após a entrada de Conley no programa de conversão.

Boy Erased foi dedicado aos pais do autor. Ou seja, mesmo após passar por uma experiência traumática, Conley decidiu perdoá-los. Ele defende que os pais vêm de uma geração em que a diversidade era apenas uma palavra perdida no dicionário. Hoje, Conley mora em Nova York com o marido. A relação dele com os pais melhorou. A mãe o acompanhou durante o lançamento do livro, mas o pai, embora tenha admitido que o AEA foi uma péssima escolha, ainda acredita que a homossexualidade não faz parte dos “planos de Deus”.

O livro ganhou adaptação cinematográfica de peso. Nicole Kidman e Russel Crowe interpretam os pais de Conley, e o papel do autor ficou com Lucas Hedges. Ao contrário do livro, o filme não alcançou o mesmo sucesso de público, além de ter gerado polêmica no Brasil. A distribuidora decidiu não exibir o filme nos cinemas por questões comerciais, mas parte do público foi às redes sociais reclamar de censura.

Em época de fake news, verdades alternativas, pós-verdade, todos que acreditam em direitos iguais precisam ajudar a esclarecer a diferença entre fato e crença. Talvez assim finalmente possamos trilhar o caminho da diversidade. Boy Erased é a história de uma família que se ama, mas, assim como outras famílias, enfrenta problemas. E, às vezes, com a melhor das intenções, escolhe o pior caminho para ajudar aquele a quem ama.

*João Lourenço é jornalista. Passou pela redação da FFWMAG, colaborou com a Harper’s Bazaar e com a ABD Conceitual, entre outras publicações estrangeiras de moda e design. Atualmente está em Nova York escrevendo seu primeiro romance.


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Comentários

6 Respostas para “Boy Erased: A luta de Garrard Conley contra a cura gay

  1. Tenho lido vários livros com essa temática. Sempre são os filhos relatando suas angústias e seus dilemas. E eu? sou a mãe saindo do armário. Estou adentrando nesses escombros da desconstrução. Sim… escrevi um livro com essa temática, que por sinal chama-se Desconstrução. Ele relata o dilema de uma mãe evangélica, que ao longo dos anos fez uma construção padrão que se desmorona ao receber a notícia que seu filho é gay. O Brasil precisa de autores nacionais que abordem essa questão. Se alguém se interessar em conhecer meu trabalho… é só chamar “linolica” no google. Sim… sou eu mesma, em busca de oportunidade de compartilhar minha experiência, minha história.

  2. Lendo esse artigo, se espantei, chorei… senti vontade de gritar, olhei para o céu e disse: “Deus, é toda essa desgraça a sua vontade? Toda essa raiva, essa repreensão psicopata e suicida?”. Não. Precisamos mudar! A nossa sociedade está doente e o vírus são seus preconceitos. Humanidade, ouçam os nossos gritos!!!!!!!!

  3. Foi feito um filme sobre esse livro? Qual o nome do filme? Tem no YouTube?
    Foi feito um filme sobre esse livro ? Qual o none?

  4. Oi, Valdirene! O nome foi filme é “Boy Erased: Uma Verdade Anulada” e, no momento, só está disponível em DVD.

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