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Leia um trecho de Boy Erased

8 / fevereiro / 2019

Boy Erased: Uma verdade anulada acompanha a emocionante jornada de Garrard Conley ao ser matriculado em um programa de conversão sexual. Imersos na comunidade conservadora em que vivem, os pais de Garrard acreditavam que sua homossexualidade poderia ser curada.

Essa história real mostra as consequências de tentar aniquilar uma parte de si mesmo. É uma mensagem de esperança e um pedido de tolerância para todos que vivem situações semelhantes de repressão. O livro deu origem ao filme homônimo com Nicole Kidman, Russell Crowe e Lucas Hedges, que chega no Brasil em formato digital ainda em 2019.

Leia um trecho:

 

segunda-feira, 7 de junho de 2004

John Smid estava de pé, as costas retas, sorrindo com seus óculos de armação fina, usando a calça cáqui e a camisa de botão listrada que haviam se tornado o uniforme dos homens evangélicos de todo o país. As costuras da camiseta que usava por baixo se esticavam, rígidas, sob a camisa, e o cabelo louro e grisalho estava domado por um corte máquina cinco, comum em todos os barbeiros do Sul dos Estados Unidos. O resto de nós estava sentado em um semicírculo voltado para ele, todos vestidos de acordo com as regras determinadas em nossos manuais de instruções de 274 páginas.

    Homens: Sempre usar camisas, inclusive para dormir. Camisetas sem manga não são permitidas, seja como roupa comum ou de baixo, inclusive regatas. A barba deve ser feita todos os dias. Costeletas nunca devem ficar abaixo da ponta da orelha.

    Mulheres: Usar sutiã o tempo todo, a não ser para dormir. Saias devem ficar na altura dos joelhos ou abaixo deles. Tops permitidos apenas se usados sob blusas. Pernas e axilas devem ser raspadas pelo menos duas vezes por semana.

— A primeira coisa que vocês precisam fazer é reconhecer o quanto se tornaram dependentes de sexo, de coisas que não são de Deus — disse Smid.

Estamos no Primeiro Passo do Amor do programa de Doze Passos para a Ação, uma série de princípios que põe os pecados da infidelidade, da brutalidade, da pedofilia e da homossexualidade no mesmo patamar de vícios como o alcoolismo e o jogo: um tipo de Alcoólicos Anônimos para o que os conselheiros chamam de “desvio sexual”.

Algumas horas antes, sentado sozinho em sua sala, eu havia visto um homem diferente: um Smid mais bondoso e brincalhão, um palhaço de meia-idade disposto a usar todo tipo de técnica para me fazer sorrir. Ele havia me tratado como criança, e eu tinha relaxado naquele papel, apesar de ter dezenove anos na época. Smid disse que eu tinha ido ao lugar certo, que a Amor em Ação me curaria, me tiraria do pecado e me levaria à luz da glória de Deus. O escritório dele parecera iluminado o bastante para sustentar aquela afirmação, as paredes nuas a não ser por alguns recortes de jornal e versos da Bíblia bordados dispostos em molduras. A janela dava para um terreno baldio, raro naquela área dos arredores da cidade: um gramado abandonado, pontuado por dentes-de-leão coloridos e seus milhares de sementes que se espalhariam pela rodovia até o fim da semana.

— Nós tentamos misturar vários modelos de tratamento aqui — garantira Smid, girando a cadeira de escritório para olhar pela janela.

Um sol alaranjado se erguia atrás dos prédios mal caiados ao longe. Esperei que a luz do sol os tomasse, mas, quanto mais observava, mais ela parecia demorar. Eu me perguntei se era assim que o tempo funcionaria naquele lugar: minutos pareceriam horas, horas pareceriam dias, dias pareceriam semanas.

— Assim que você entra no grupo, já está caminhando para a recuperação — dissera Smid. — O importante é se lembrar de manter a cabeça aberta.

Eu estava ali por escolha própria, apesar do meu ceticismo crescente, apesar da vontade secreta de fugir para não encarar a vergonha que sentia desde que meus pais haviam descoberto que eu era gay. Tinha investido demais em minha vida para deixá-la para trás: em minha família e naquele Deus cada vez menos definido que conhecia desde pequeno.

Deus, eu havia pedido em oração, deixando a sala de Smid e seguindo pelo corredor estreito até o salão principal, as luzes fluorescentes estalando em seus suportes de metal, não sei mais quem é o Senhor, mas, por favor, me dê sabedoria para sobreviver a tudo isso.

 Algumas horas depois, sentado no meio do semicírculo de Smid, eu esperava que Deus se juntasse a mim.

— Vocês não são melhores nem piores do que os outros pecadores do mundo — disse Smid.

Ele mantinha os braços cruzados atrás das costas, o corpo todo tenso, como se tivesse sido amarrado a uma tábua invisível.

— Deus vê todos os pecados sob a mesma luz.

Todos assentimos. O jargão do ex-gay já havia se tornado familiar para mim, apesar de ter sido um choque quando o lera pela primeira vez no site da instituição, quando ficara sabendo que a homossexualidade que eu tinha tentado ignorar durante grande parte da minha vida estava “fora de controle”, que eu podia acabar tendo relações com o cachorro de alguém se não me curasse. Por mais absurda que a ideia possa parecer neste momento, eu não tinha muitas informações em que me basear na época. Ainda era jovem o suficiente para ter tido apenas casos passageiros com outros homens. Antes da faculdade, eu só havia conhecido um homem que dizia abertamente que era gay: o cabeleireiro da minha mãe, um cara grande e peludo que passava a maior parte do tempo dando sinais do que eu considerava um estereótipo — elogiava minha aparência, fofocava sobre os colegas de trabalho, discutia os planos para sua próxima festa de Natal maravilhosa, a barba branca impecável já esculpida para encarnar o papel de Papai Noel Safado. O restante do preconceito eu havia aprendido em pantomimas: punhos frouxos e gestos exagerados de membros da igreja fazendo piada; frases que chamavam atenção em virtude daquela cadência melódica comum na TV — “Ai, não precisaaava” —; petições da igreja que tinham que ser assinadas para manter o país a salvo dos “pervertidos”. O brilho de uma legging neon, o agitar de um boá, um bumbum durinho rebolando para a câmera. O que eu via na TV parecia corroborar que ser gay era estranho, não natural.

— Vocês precisam entender uma coisa muito importante — disse Smid, a voz tão próxima que pude senti-la em meu peito. — Estão usando um pecado sexual para preencher o vazio que sentem pela falta de Deus em suas vidas.

Eu estava ali. Ninguém podia dizer que eu não estava tentando.

O salão principal era pequeno, iluminado por lâmpadas fluorescentes e tinha uma porta de correr que dava para uma varanda de concreto desbotada pelo sol. Nosso grupo estava sentado em cadeiras dobráveis acolchoadas, perto da frente da sala. Nas paredes atrás de nós, havia folhas plastificadas com os Doze Passos que prometiam uma cura lenta, mas duradoura. Além desses pôsteres, as paredes não tinham basicamente nada. Não havia crucifixos nem estações da via crucis. Ali, tal iconografia era considerada idolatria, assim como a astrologia, o jogo Dungeons & Dragons, as religiões orientais, os tabuleiros de Ouija, o satanismo e a ioga. A Amor em Ação tinha uma posição mais extrema contra o mundo secular do que as igrejas da minha infância, embora eu já estivesse familiarizado com o modo de pensar dos conselheiros. (…)

— Harry Potter não passa de um sedutor das almas das crianças — dissera certa vez um pastor batista que fora visitar a igreja da nossa família.

Não duvido que meus conselheiros da AEA também tivessem descartado qualquer menção a Harry Potter e que, portanto, o tempo que passei em Hogwarts tivesse que continuar sendo um prazer secreto. Eu havia selado um pacto ainda mais sério com Deus ao ir até ali, algo que exigia que abstraísse a maior parte do que acontecera antes da AEA. Antes de entrar naquela sala, tinham me pedido para deixar tudo para trás, com exceção de minha Bíblia e meu manual.

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