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Poder, corrupção e prazer em um dos lançamentos mais aguardados do ano

17 / fevereiro / 2023

Leia um trecho de A era imoral, épico comparado a O poderoso Chefão

Crédito: Zach Meyer para The Washington Post

Quando Sunny Wadia acorda, não quer ver os rastros da noite anterior. Cabe às hábeis e silenciosas mãos de Ajay a rotina de recolher de garrafas vazias, cigarros e charas ainda acesos nos cinzeiros, drogas e cartões de créditos esquecidos. Ajay sente prazer em servir, Sunny se deleita com tudo o que poder e dinheiro podem oferecer.

Jovem playboy e herdeiro da sanguinária família Wadia, Sunny carece da fibra implacável do pai, mas ainda assim deseja destroná-lo. À sombra das luxuosas propriedades de Nova Déli, entre festas extravagantes e negociações predatórias, uma saga familiar repleta de traições, crimes e vinganças se desenrola. Seja bem-vindo à era imoral, o primeiro volume da aguardada trilogia da jornalista e escritora nascida no norte da Índia Deepti Kapoor.

O épico à la O Poderoso Chefão foi um dos títulos mais disputados da Feira de Frankfurt de 2019, com os direitos de publicação vendidos para mais de 20 países e os audiovisuais adquiridos pela FX e pela Fox 21. Celebrado pela crítica especializada como uma obra deslumbrante impossível de largar (The Washington Post) e um thriller suntuoso que transita entre a ficção literária e a comercial com a habilidade de uma contadora de histórias nata (The New York Times), A era imoral chega às livrarias brasileiras em 13 de março pela Intrínseca.

Dos poeirentos vilarejos à capital eletrizante, a trama movida a desejo, riqueza e corrupção entrecruza representantes da divisão abissal entre classes: Ajay, o diligente funcionário nascido na extrema pobreza que alça seu posto como “homem dos Wadia”; a de seu patrão hedonista com ambições artísticas, Sunny Wadia; e, por último, a de Neda, uma curiosa jornalista que se vê presa entre o tédio das restritas ambições da classe média, uma paixão e a possibilidade de violar os valores morais que sempre conheceu.

Confira abaixo um trecho de A era imoral, já disponível em pré-venda.

 

NOVA DÉLI, 2004

Cinco pessoas em situação de rua jazem mortas ao lado da Perimetral Interna de Déli.

Parece o início de uma piada de mau gosto.

Mas, se for, ninguém contou para eles.

Elas morreram no lugar onde dormiam.

Quase.

Os corpos foram arrastados por dez metros por uma Mercedes em alta velocidade que subiu no meio-fio e os destruiu.

É fevereiro. Três da madrugada. Seis graus.

Encolhidos, quinze milhões de pessoas dormem.

Uma neblina pálida de enxofre cobre as ruas.

E uma das pessoas mortas, Ragini, tinha dezoito anos. Ela estava grávida de cinco meses. Seu marido, Rajesh, tinha vinte e três anos e estava a seu lado. Ambos dormiam de barriga para cima, cobertos por xales pesados da cabeça aos pés, já parecendo cadáveres, exceto pelos sinais reveladores: a mochila embaixo do pescoço, as sandálias alinhadas com precisão ao lado dos braços.

Uma cruel reviravolta do destino: esse casal chegara a Déli no dia anterior. Buscara abrigo com Krishna, Iyaad e Chotu, três trabalhadores migrantes do mesmo distrito deles em Uttar Pradesh. Todos os dias esses homens acordavam antes do alvorecer e caminhavam até a grande feira de mão de obra em Company Bagh, tentando conseguir qualquer trabalho que pudessem encontrar para o dia — cozinheiro em um dhaba, garçom de casamento, operário de construção civil —, mandando o dinheiro de volta para o vilarejo, pagando o shaadi de uma irmã, a escola de um irmão, o remédio noturno de um pai. Vivendo um dia de cada vez, hora a hora, trabalhadores pobres lutando para sobreviver. Voltando para dormir no mesmo ponto árido após o cair da noite, ao lado da perimetral, perto de Nigambodh Ghat. Perto dos barracos da favela de Yamuna Pushta — agora demolida —, que havia sido seu lar.

 

Os jornais, entretanto, não perdem tempo com esses três homens. Seus nomes desvanecem no raiar do dia junto com as estrelas.

Um furgão da polícia com quatro agentes chega ao local do acidente. Eles saltam e veem os cadáveres e a multidão raivosa ao redor do carro, resmungando. Ainda tem alguém lá dentro! Um jovem, sentado com as costas eretas, braços em volta do volante, olhos bem fechados. Está morto? Morreu daquela maneira? Os policiais empurram a ralé para o lado e espiam o interior do veículo.

— Ele está dormindo? — pergunta um policial aos colegas.

Aquelas palavras fazem o motorista virar a cabeça e, como um monstro, abrir os olhos. O policial observa de novo o lado de dentro do carro e quase pula de medo. Há algo de grotesco naquele rosto delicado, bonito. Os olhos são maliciosos e selvagens, mas, exceto isso, não há um fio de cabelo fora do lugar. Os policiais abrem a porta, agitam seus bastões de bambu ostensivamente e ordenam que ele saia. Há uma garrafa vazia de Black Label aos pés do homem.

Ele é um jovem esbelto, o corpo malhado coberto por um terno safári de gabardine cinza, o cabelo milimetricamente repartido, impecavelmente gomalinado. Por baixo do bafo de uísque, há um outro aroma: Davidoff Cool Water. Não que os policiais pudessem reconhecer.

O que eles sabem é o seguinte: aquele homem não é rico, de jeito nenhum. Pelo contrário: é um fac-símile, um homem trajando uma imitação da riqueza, a serviço dela. As roupas, as feições bem-cuidadas, o carro, nada daquilo consegue esconder a pobreza intrínseca de seu nascimento; o cheiro que ela exala é mais forte do que o de qualquer bebida ou colônia.

Sim, ele é um empregado, um chofer, um motorista, um “garoto”.

Uma versão bem alimentada e adestrada daquilo que jaz morto na estrada.

E aquela Mercedes não é dele.

O que significa que ele pode apanhar.

 

Atordoado, o homem resmunga enquanto os policiais o arrastam para fora da pista. Curvando-se, ele vomita nos próprios mocassins. Um policial bate nele com o bastão de bambu e o levanta. Outro o revista, encontra sua carteira, encontra um coldre axial vazio, encontra uma caixa de fósforos de um hotel chamado The Palace Grande, encontra um prendedor de notas com vinte mil rupias.

De quem é esse carro?

De onde veio esse dinheiro?

De quem você roubou?

Achou que fosse dar um passeiozinho?

De quem é essa bebida?

Chutiya, cadê a arma?

Filho da puta, para quem você trabalha?

Na carteira do homem há um título de eleitor, uma habilitação, trezentas rupias. Seus documentos dizem que se chama Ajay. O nome do pai é Hari. Nasceu no dia 1-º de janeiro de 1982.

E a Mercedes? Está registrada em nome de um tal Gautam Rathore.

Os policiais confabulam: o nome soa familiar. E o endereço — Aurangzeb Road — fala por si. Só ricos e poderosos moram lá.

Chutiya — rosna um agente erguendo os documentos do carro nas mãos. — Este é o seu patrão?

Aquele jovem chamado Ajay, porém, está bêbado demais para falar.

— Babaca, você pegou o carro dele?

Um dos policiais vai andando até a lateral da pista e olha para os mortos. Os olhos da moça estão abertos, a pele já azul por causa do frio. Ela está sangrando por entre as pernas, onde havia vida.

 

Na delegacia, Ajay é despido e largado nu em um cômodo frio e sem janelas. Está tão bêbado que desmaia. Os policiais voltam para lhe jogar água gelada e ele acorda gritando. Sentado, eles pressionam seus ombros contra a parede, abrem suas pernas. Uma delegada fica em pé sobre suas coxas até interromper a circulação. Ele ruge de dor e desmaia novamente.

 

No dia seguinte, o caso já ganhou repercussão. A mídia está chocada. No início, o assunto é a garota grávida. Os canais de notícia lamentam sua morte. Mas ela não era fotogênica nem tinha um futuro pela frente. Então o foco passa para o assassino. Uma fonte confirma que o carro é uma Mercedes registrada no nome de um tal Gautam Rathore, e isso vira notícia — o sujeito é uma figura cativa da cena social de Déli, jogador de polo, hábil contador de histórias e príncipe, realeza de verdade, o primeiro e único filho do parlamentar e marajá Prasad Singh Rathore. Gautam Rathore estava dirigindo? Essa é a pergunta que todos fazem. Mas não, não, seu álibi é irrefutável. Ele estava de férias fora de Déli na noite do acidente. Encontrava-se em um Fort Palace perto de Jaipur. Seu paradeiro atual é desconhecido. Gautam, porém, emitiu um comunicado expressando seu horror, enviando os pêsames aos mortos e seus parentes. O motorista, revela o comunicado, começou a trabalhar para ele recentemente. Parece que pegou a Mercedes sem que Gautam soubesse. Pegou o uísque e o carro e saiu para dar uma voltinha ilícita.

Um comunicado da polícia confirma essas informações: Ajay, funcionário de Gautam Rathore, roubou uma garrafa de uísque da casa de Rathore enquanto o patrão estava fora, pegou o carro para dar um passeio e perdeu o controle.

A história se torna fato.

Estabelece-se nos jornais.

O boletim de ocorrência é registrado.

Ajay, filho de Hari, é indiciado de acordo com a Seção 304(A) do Código

Penal Indiano. Homicídio culposo. Pena máxima: dois anos.

 

Ajay é mandado à corte lotada e apresentado ao magistrado distrital, que, em dois minutos, determina a prisão preventiva sem direito a fiança. Ele é levado de ônibus, junto com outros indiciados, para a penitenciária de Tihar. São enfileirados para registro, ficam sentados em filas tristes de bancos de madeira na recepção, cercados por cartazes com regras pregados no reboco úmido e empelotado das paredes. Quando chega sua vez, ele é levado para um escritório apertado onde um escriturário e um médico penitenciário o esperam com a máquina de escrever e o estetoscópio. Seus pertences são catalogados novamente: carteira, prendedor de notas contendo vinte mil rupias, caixa de fósforos com o nome “Palace Grande”, coldre axial vazio. O dinheiro é contado.

O escriturário pega a caneta e começa a preencher o formulário.

— Nome?

Ajay olha para eles.

— Nome?

— Ajay — diz ele com uma voz seca, que mal dá para ouvir.

— Nome do pai?

— Hari.

— Idade?

— Vinte e dois.

— Profissão?

— Motorista.

— Fale alto.

— Motorista.

— Quem é o seu patrão?

Ajay cerra a mandíbula.

O escriturário olha por cima dos óculos.

— Qual é o nome do seu patrão?

— Gautam Rathore.

Dez mil rupias são tiradas do dinheiro e o resto é entregue de volta a Ajay.

— Coloque dentro da meia — diz o escriturário.

 

Ele é registrado e mandado para o Pavilhão 1, escoltado pelo pátio até o galpão, acompanhado pelo corredor úmido até a cela larga onde nove outros detentos vivem apertados e amontoados. Roupas estão penduradas nas grades da cela como em uma barraca de feira e, dentro, o chão está coberto de colchões esfarrapados, cobertores, baldes, trouxas e sacos. Há uma pequena latrina à moda turca no canto. Embora não tenha espaço sobrando, eles arrumam um lugar para Ajay, sob o olhar atento do carcereiro, no chão frio ao lado da latrina. Mas nenhum colchão está disponível. Ajay põe o cobertor que lhe deram sobre o chão de pedra. Senta-se encostado na parede, o olhar vazio fixo à frente. Alguns poucos companheiros de cela vão até ele e se apresentam, mas ele não diz nada, não registra nada. Encolhe-se e dorme.

 

Quando acorda, vê um homem em pé acima dele. Velho e desdentado, com olhos frenéticos. Mais de sessenta anos na Terra, ele está dizendo. Mais de sessenta anos. Ele é motorista de riquixá motorizado em Bihar, ou pelo menos era. Está ali esperando pelo julgamento há seis anos. É inocente. É uma das primeiras coisas que diz.

— Sou inocente. Deveria ser traficante de drogas. Mas sou inocente. Fui pego no lugar errado. Havia um traficante no meu riquixá, mas ele fugiu e os policiais me pegaram.

Ele continua, perguntando qual a acusação contra Ajay, quanto dinheiro ele tem escondido. Ajay o ignora e vira-se para o outro lado.

— Como quiser — diz alegremente o velho —, mas fique você sabendo que eu posso conseguir que coisas sejam feitas aqui. Por cem rupias, posso arrumar outro cobertor; por cem rupias, posso arrumar uma refeição melhor.

— Deixa ele em paz! — grita outro detento, um garoto rechonchudo e escuro de Aligarh, palitando os dentes com um pedaço de neem. — Você não sabe quem ele é? Ele é o Assassino da Mercedes.

O velho se afasta.

— Eu sou Arvin — diz o garoto gordo. — Dizem que matei minha mulher, mas sou inocente.

 

Ida para o pátio, hora do intervalo. Centenas de detentos saindo de suas celas para se reunir. Os homens o observam. Ele é uma espécie de celebridade. Todos ouviram falar do Assassino da Mercedes. Querem olhar mais de perto, julgar por si mesmos sua inocência ou culpa, ver se ele é durão, se está com medo, decidir a que grupo pertence. Não é preciso mais do que um minuto para reconhecer que ele é um dos inocentes, o bode expiatório de um patrão ricaço. Os homens tentam extrair essa verdade dele. O que prometeram para que ele assumisse a culpa? Alguma coisa boa? Dinheiro quando ele sair? Ou vão pagar os estudos dos filhos e das filhas dele até se formarem? Ou aconteceu o contrário? A família dele foi ameaçada? Corria risco de vida? Ou ele havia simplesmente sido leal?

Representantes das gangues que mandam na cadeia se aproximam dele no pátio, no refeitório, nos corredores, tentam angariar seu apoio, fazem discursos. A gangue Chawanni, a gangue Sissodia, a gangue Beedi, a gangue Haddi, a gangue Atte. A temida gangue Bawania. A gangue Acharya, os Gupta. Na condição de um homem inocente, um homem desacostumado à vida do crime, ele vai precisar de proteção. Logo vai se tornar alvo de extorsão se não escolher uma gangue; sem o apoio de uma delas, logo será estuprado, um carcereiro vai fazer com que seja transferido para uma cela com outro detento sozinho, ele vai ser a diversão dos outros, ninguém vai aparecer quando gritar. E vão pegar todo o dinheiro que ele tiver. Agem como se estivessem oferecendo um conselho sábio e neutro, como se eles mesmos não fossem a ameaça. Ajay é puxado de um lado para outro. Quanto dinheiro você tem? Junte-se a nós. Fique com a nossa gangue e você vai ser protegido. Vai ter um celular, pornografia, frango. Vai se livrar da “festa dos calouros” que estão preparando para você. Fique com a nossa gangue e você vai poder foder, vai poder estuprar. Nossa gangue é a mais forte. Você deve se juntar a nós antes que seja tarde demais. Ele ignora todos os discursos. Quando volta para a cela, constata que seu cobertor foi levado.

 

Seja como for, ele prefere ficar sozinho, sofrendo. Por dentro, o horror dos mortos o persegue, um lamento a cada respiro. Ele rejeita todas as gangues, esnoba os emissários e suas propostas. Então, no segundo dia, do lado de fora da farmácia, sozinho, logo após ter sido chamado para a consulta médica, três homens de outra cela se amontoam ao redor dele. Põem a língua para fora e retiram lâminas de barbear guardadas na boca, atacam-no, cortam seu rosto, seu peito e o antebraço que ele levanta para se proteger. Ajay recebe os cortes em penitência, sem fazer qualquer expressão de dor. Até que sua paciência finalmente se esgota, se rompe como um alçapão. Ele arrebenta o nariz do primeiro agressor com a base da palma da mão, pega o braço do segundo na altura do cotovelo e o quebra. Dá uma rasteira no terceiro e leva a lâmina até a língua do próprio homem, cortando-a ao meio desde o fundo da garganta.

 

Ele é encontrado em pé sobre os homens, salpicado de sangue, os prisioneiros berrando de dor enquanto ele é trancafiado em uma solitária, aturdido. É espancado, dizem que vai ficar lá por muito tempo. Quando a porta se fecha, Ajay surta, rosna, soca e chuta as paredes. Urros. Palavras incompreensíveis. Ele não consegue controlar o próprio mundo.

 

Ajay imagina o fim. De tudo que ele é, de tudo que fez. Mas não. Na manhã seguinte a porta se abre, novos guardas entram, educados, comedidos. Ele deve acompanhá-los. Antes, vai tomar banho. Ele está tremendo, nu e esfolado. Quando os guardas se aproximam, Ajay ergue os punhos cerrados, as costas contra a parede, pronto para lutar. Eles riem, jogam roupas limpas para ele e o esperam no corredor.

 

Ele é levado ao gabinete do diretor. Encontra uma bela refeição servida. Frutas frescas cortadas, paratha, lassi. Uma visão do paraíso. O diretor pede a ele que se sente.

— Pegue um cigarro. Sirva-se. Aconteceu um terrível engano. Uma falha de comunicação. Não fui informado — diz ele. — Se eu tivesse sido informado, isso nunca teria acontecido. Na verdade, ninguém sabia, nem mesmo seus amigos aqui dentro. De agora em diante as coisas serão diferentes. Você vai ser levado até eles. Poderá fazer o que quiser, dentro do razoável. E esse incidente infeliz com aqueles outros homens será esquecido, foi um deslize, nunca deveria ter acontecido. Eles poderiam ser punidos. Só que você mesmo os puniu, não é mesmo? Um espetáculo e tanto. Ah, e esse dinheiro, acredito que seja seu. Você

deveria ter dito algo.

O diretor se inclina para a frente sobre a escrivaninha.

— Você deveria ter deixado claro. Deveria ter nos informado.

Ajay olha para a comida e o maço de cigarros.

— Informado o quê? — pergunta ele.

O diretor sorri.

— Que você é o homem dos Wadia.


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