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A vida de Bono e o exercício das contradições

2 / dezembro / 2022

Por Bruno Capelas*

Ativista mundial, astro do rock, homem de fé, pai de família: por vezes contrastantes, as muitas facetas de Bono, vocalista do U2, fazem a força da autobiografia Surrender

Foto: Arquivo pessoal

O cantor punk que se tornou um ativista pela paz. O adolescente órfão que já se sentou à mesma mesa que três presidentes dos Estados Unidos e incontáveis líderes mundiais. O homem de fé que emprestou óculos ao papa João Paulo II, mas que também já ganhou a vida se vestindo de diabo em cima de um palco. Acompanhar as mais de quatro décadas de carreira de Bono, o vocalista e fundador do U2, é um exercício de (aparentes) contradições.

Há quem se atraia por elas. Há quem, por outro lado, tenha perdido a paciência de acompanhar as desventuras do irlandês ao longo do tempo por conta dessas mesmas contradições – citando um exemplo: como pode o homem que prega a paz posar ao lado de George W. Bush, o homem que liderou duas guerras à frente dos Estados Unidos?

Seja qual for o seu caso, Bono oferece, neste final de 2022, um meio para quem quiser mergulhar nessas questões junto com ele: a recém-lançada autobiografia Surrender, um calhamaço de 640 páginas ricamente ilustrado e narrado pelo próprio. Para fãs do U2 ou meros curiosos, é uma oportunidade rara de penetrar a intimidade do cantor, que guia o leitor por uma jornada de memórias, confissões e histórias, embaladas por uma trilha sonora de 40 canções-símbolos de sua obra – as faixas também compõem a recente coletânea homônima, lançada apenas nas plataformas digitais.

 

Édipo em Dublin, entre gangues e igrejas

Foto: Arquivo pessoal

Desde criança, Bono cresceu em meio às contradições: afinal de contas, ele nasceu em um país em que sua religião determina se você vive, morre ou precisa ir para outro lado da fronteira. A mãe, Iris, era protestante; o pai, Bob, era católico; e o jovem Paul Hewson (o nome de batismo de Bono) frequentava as duas igrejas, tornando-se um cristão com ouvidos atentos a ambos os lados.

Além dos pais, exerceu forte influência sobre o garoto o irmão mais velho, Norman, responsável por colocar os primeiros discos de música pop dentro de casa – o pai tinha voz de tenor e preferia óperas.

As diferenças entre pai e filho não se limitavam apenas à música: os dois não se davam bem e a relação piorou ainda mais depois da morte de Iris, quando Bono tinha 14 anos. Incapazes de compartilhar o luto, os dois passaram anos afastados. A perda da mãe e a distância do pai, além de moldar o jovem, também se tornaram material para muitas das canções do U2 – e para quem estiver disposto a decifrar os escritos, fica mais fácil entender músicas como “I Will Follow”, “Out of Control” ou “Who’s Gonna Ride Your Wild Horses?”.

Ao mesmo tempo que frequentava a igreja e se debruçava sobre sua fé, tendo até mesmo feito parte de um grupo radical, o Shalom, que remontava aos costumes dos cristãos dos primeiros séculos depois de Cristo, Bono também participava de gangues – foi dentro de uma delas, o Lipton Village, que ele ganhou o apelido que lhe tornou conhecido. Inicialmente, era chamado de Bono Vox, uma piada com uma rede de lojas irlandesas, a Bonavox – que significa “boa voz” em latim.

 

Garagens, cabines de telefone, bombas e gravações

Foto: Arquivo pessoal

Premonitório ou não, o garoto já tinha esse apelido quando respondeu a um anúncio do baterista Larry Mullen Jr. que procurava músicos para formar uma banda. A história do primeiro ensaio do grupo, na cozinha de Larry, é um dos grandes momentos de Surrender, assim como os primeiros contatos do grupo com seu mítico empresário, Paul McGuinness, ou a primeira viagem de Bono a Londres com a então namorada, hoje esposa, Ali, buscando um contrato de gravação para o U2 – sem dinheiro, os dois dormiram em pé dentro de uma cabine telefônica. Mas não há só momentos engraçados: a primeira parte do livro também tem muitos relatos sobre a violência e o terrorismo na Irlanda do Norte durante os anos de 1960 a 1980, que marcaram a visão política do cantor.

A pátria natal, inclusive, é um dos raros motivos que faz Bono citar o Brasil no livro – a despeito das várias turnês por aqui, o país aparece mesmo numa comparação com a Irlanda. “Os irlandeses são como os brasileiros, exceto por três diferenças cruciais: nós quase nunca nos classificamos para a Copa do Mundo; evitamos a própria nudez; e nem sempre dá para reconhecer que nossa dança é de fato uma… dança”, conta o músico, em uma passagem na qual é difícil não abrir um sorriso.

Saborosas também são as descrições das primeiras sessões de gravação com o U2, as primeiras turnês pelos Estados Unidos e pela Europa e, claro, a ascensão da banda ao longo do tempo – em especial, com a trilogia de discos The Unforgettable Fire, The Joshua Tree e Achtung Baby. Mais do que descrições acuradas dos momentos de estúdio, Bono não se furta em elogiar os colegas e os produtores de sua banda, com especial atenção para o pioneiro Steve Lilywhite e a dupla dinâmica Brian Eno e Daniel Lanois, ao lado de quem o grupo marcou época.

O sucesso, porém, faz o cantor estar sempre vigilante – com o próprio ego, com sua fé, com a atenção que dedica à mulher e à família e com reflexões sobre seguir em frente no caminho em que acredita. Ler sobre essas questões abre caminhos para entender melhor o homem e suas razões.

 

Entre a pobreza e o Salão Oval, passando pelo Vaticano, mas sempre punk

Foto: Arquivo pessoal

A ascensão no mundo pop fez Bono perceber que poderia usar sua boa voz não só para cantar o amor e a fé. Ele também percebeu que poderia tentar mudar o mundo – uma tarefa, conclui ele ao longo do livro, talvez mais fácil do que mudar a si mesmo. O cantor começou pela Irlanda, seja escrevendo canções como “Sunday Bloody Sunday” – que fala sobre o assassinato de civis pela polícia britânica durante um protesto pacífico na Irlanda do Norte – ou unindo políticos de partidos rivais em um só palco. Daí para os Estados Unidos e suas inúmeras contradições (a tese de Bono sobre a América real e a inventada é outro ponto alto do livro) foi um pulo, escancarado em The Joshua Tree e no documentário Rattle and Hum, gravado pela banda no final dos anos 1980.

Mas havia mais: a pobreza, a AIDS, a fome, a dívida dos países subdesenvolvidos com os países ricos… um sem-número de questões que colocou Bono em salas de reuniões bem diferentes de um estúdio de gravação. Ao longo do tempo, sem abandonar a postura punk que o fez um dia pegar num microfone – o U2 é uma banda que começou a escrever músicas próprias porque não sabia tocar as dos outros, diz o cantor –, o irlandês criou uma segunda banda. Não com músicos, mas sim com outros ativistas, fazendo turnês que iam dos cantos mais paupérrimos da África até o Salão Oval da Casa Branca, passando pelo Vaticano – outra grande história do livro é a de quando João Paulo II tomou emprestados os óculos de lente azul Gucci, marca registrada de Bono (e que ele nunca tira do rosto  devido ao desconforto de um glaucoma).

Aos poucos, porém, essa banda começa a tomar o espaço do próprio U2 dentro da vida de Bono – algo que se faz notar toda vez que o cantor conta uma história em que o ativismo e a carreira do grupo conflitam, seja quando posa ao lado de Bush ou quando o tenor Luciano Pavarotti invade o estúdio da banda com uma equipe de TV para pressioná-la a cantar “Miss Sarajevo” com ele na Itália.

Hoje, pode parecer até que o U2 sempre pertenceu a esse lugar, mas um dos momentos mais interessantes de Surrender é justamente acompanhar essa jornada, do garoto cujo primeiro show foi o The Clash até o homem que pode receber Mikhail Gorbachev em sua casa, de surpresa. Se para muita gente talvez não haja nada menos punk que o U2 e suas canções espirituais, é justamente a energia daquele movimento que fez Bono traçar esses caminhos – e como bom fã de Ramones, ele não perde a chance de sacanear o gosto do amigo The Edge pelo rock progressivo do Yes.

Há muito o que guardar das muitas páginas de Surrender: histórias com grandes nomes da música (Quincy Jones, Paul McCartney, Frank Sinatra), do poder (Barack Obama, Nelson Mandela), da economia (Bill Gates, George Soros, Warren Buffett) e com gente anônima, mas que faz a diferença no mundo. No fim de tudo, porém, fica na cabeça a ideia de que, 35 anos após ser gravada, “I Still Haven’t Found What I’m Looking For” segue mais forte do que nunca. Que Paul David Hewson, o Bono, ainda tenha muita lenha para queimar nesse caminho de peregrino, cheio de contradições, e continue em busca do que está procurando. Seguiremos na audiência.

 

 

*Bruno Capelas é jornalista, mora em São Paulo e apresenta o Programa de Indie, na Eldorado FM (São Paulo). Foi editor de tecnologia do Estadão e já contribuiu com veículos como iG, IGN Brasil, GQ Brasil e Cajuína. Também escreveu o livro Raios e Trovões – A História do Fenômeno Castelo Rá-Tim-Bum e, nas horas vagas, mixa coquetéis e álbuns na newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais.


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Comentários

31 Respostas para “A vida de Bono e o exercício das contradições

  1. Sou Completamente Apaixonada pelo meu Bono Vox……

  2. Gostei da noticia sobre o livro. Vou adquiri-lo em breve pra saber bastante sobre o Bono que eu admiro muito. Sempre canto com ele: with or without you.??

  3. Me apaixonei pelo U2 e consequentemente pelo Bono aos 16 anos, hoje aos 44 sigo tendo ele como – talvez a única – referência artística que não me envergonho de dizer que sou fã! (é tanta gente medíocre no meio artístico que torna difícil a gente seguir gostando).

  4. Maravilhoso, explendido, grandioso, vibrante, emocionante, como tudo que o U2 faz é bono e cia. Mais uma vez nos impressionado

  5. Ele é excelência em pessoa. Como artista

  6. U2 the best Band of planet , longe life for ALL, god Bono. Thanks for your songs.

  7. Pelo que sei foi Larry Mullen Jr quem fundou o U2, antes mesmo de a banda ter esse nome, e Bono foi o último a integrar o grupo.

  8. Sou fã numero 1 do U2. Não vejo a hora de adquirir o meu exemplar.

  9. Quero muito comprar esse livro. Será que é em Português??
    Quero muito comprar esse livro. Está em Português?

  10. Uau Bruno Capelas, essa matéria realmente me prendeu do começo ao fim. Normalmente eu não consigo me prender em leituras e matérias publicadas na internet. Mas, essa me encheu de emoção. Foi como se eu estivesse conversando com o próprio Bono Vox. Passou um filme na minha cabeça. Parabéns, show!
    Sou de Campo Grande/MS, estou lendo a matéria as 23:24 do dia 07/12/22

  11. Amo essa Banda , principalmente por esse cara chamado Boni .
    Incrível como a música ela te transforma em uma pessoa melhor
    Viva a boa música !!!!
    Via o U2 !!!!!

  12. BONO. Um cara que marcou a época mais fantástica da humanidade 1960/2000.

  13. O mais importante de tudo, é que sempre vejo você praticando o bem, o amor, a paz ….

  14. Incrível, adorei seu comentário, me deixou curiosa para ler o livro. Adoro ler.

  15. Oi Terezinha! Sim, o livro é em português e está disponível nas principais livrarias e lojas on-line 🙂

  16. Amei seu comentário sobre “Surrender”, amo o U2 e Bono, e estou lendo e amando o livro! Enfim, “One love, one blood
    One life, you got to do what you should
    One life with each other: Sisters, brothers…”

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