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Violência, política e música na Jamaica de Marlon James

25 / julho / 2017

Marco Antonio Barbosa*

Esta é a história dos foras da lei de West Kingston. Um faroeste precisa de um mocinho para usar o chapéu branco e um bandido para usar o preto, mas, na verdade, a realidade da periferia está mais próxima do que Paul McCartney disse sobre o Dark Side of the Moon, do Pink Floyd. Tudo é sombrio. Cada guerreiro é um caubói sem casa, e cada rua tem um tiroteio escrito com sangue em alguma canção.

A vida humana parece valer pouco em Kingston, capital da Jamaica. Até pouco tempo, o país detinha a mais alta taxa de assassinatos per capita do mundo. Na década de 1970, a vida valia ainda menos. Nessa época, as disputas entre gangues iniciadas pouco depois da independência da Jamaica, em 1962, viram uma escalada de violência sem precedentes — uma guerra que incluía disputas políticas, interferência da CIA e a expansão de uma lucrativa rede de tráfico de drogas. Tudo isso em um momento que o país ganhava inesperada relevância global com a ascensão do reggae, movimento liderado por Bob Marley e The Wailers.

É com essa Kingston dos anos 1970 que Marlon James abre Breve história de sete assassinatos, obra que explora as últimas quatro décadas de história da Jamaica em mais de 700 páginas. O romance não poupa o leitor (e muito menos os personagens) ao descrever a miséria e a violência reinantes na periferia da capital e as ligações perniciosas entre a “cidade baixa” (onde ficam as favelas) e a “cidade alta” (onde vivem os ricos e poderosos). Dezenas de personagens dão voz à narrativa, em uma alternância de pontos de vista que revela uma complexa rede de motivações e sentimentos conflitantes. A coragem do escopo, a contundência da trama e a ambiciosa polifonia valeram a Marlon James o Man Booker Prize de 2015, o mais prestigiado prêmio literário do Reino Unido. O autor, nascido em Kingston em 1970, foi o primeiro jamaicano a receber a honraria. (Há anos, James não vive mais na Jamaica; a violência o fez emigrar.)

Marlon James por Jeffrey Skemp

 

A menção a Bob Marley no início deste texto não foi gratuita. O rei do reggae — ou melhor, o Cantor, nome que James usa para se referir a Marley no livro — é um dos personagens mais importantes do capítulo inicial. O autor destaca em toda a obra a importância da música popular como válvula de escape para a pobreza; não por acaso, as partes que compõem o livro são batizadas com títulos de clássicos do reggae. Além de ser o jamaicano mais famoso do mundo nos anos 1970, Marley detinha grande influência entre políticos e criminosos em Kingston.

James explora essas conexões no primeiro capítulo, que culmina com o atentado à vida do astro, ocorrido em 3 de dezembro de 1976. Como muitos dos principais acontecimentos do romance, trata-se de uma história nebulosa que une criminalidade e política, apresentada sob várias perspectivas. Bob Marley preparava-se para um grande show ao ar livre, o festival Smile Jamaica, e o evento tinha o intuito de apaziguar a violência na periferia e unir o povo. Dois dias antes da apresentação, homens armados invadiram a casa do cantor (ou Cantor) e o balearam, atingindo também sua esposa Rita e seu empresário Don Taylor. Ninguém morreu, ninguém foi preso, e até hoje, ao menos oficialmente, a identidade dos atiradores ainda é desconhecida.

O que se sabe é que o Smile Jamaica foi usado pelo então primeiro-ministro jamaicano, Michael Manley (do Partido Nacional Popular) como arma política — o que certamente desagradou seu principal adversário, o Partido Trabalhista da Jamaica. Tanto o PNP quanto o PTJ tinham braços armados, recrutados entre os gângsteres da periferia. Os Estados Unidos também estavam de olho no cenário, fornecendo armas aos “militantes” do PTJ (que se opunha às políticas esquerdistas de Manley). Bob Marley desejava que o show não tivesse conotações partidárias, mas não só fracassou nesse intuito como quase morreu. É em meio a esse furacão caribenho que Marlon James traça Breve história de sete assassinatos.

A narrativa de Breve história de sete assassinatos se inicia em West Kingston, a área mais barra-pesada de uma das capitais mais perigosas do mundo. Marlon James toma algumas liberdades criativas, mas dá a noção exata da pobreza e da violência que dominam a região.

 
 
 

…E SUAS PERSONAGENS

Além de Bob “Cantor” Marley, Marlon James se apropria livremente de outras pessoas para criar alguns personagens:

 

A experiência de ler a obra de Marlon James dialoga com outros universos conhecidos, como o mundo cão de Cidade de Deus, de Paulo Lins. Além disso, a riqueza da linguagem, que incorpora as gírias e expressões próprias do gueto jamaicano, evoca a liberdade semântica de autores como Roddy Doyle (outro vencedor do Man Booker Prize) e Irvine Welsh (com sua recriação dos dialetos proletários da Escócia). Breve história de sete assassinatos é uma leitura única, em que a confluência de vozes, as motivações e a contundência descritiva amplificam a humanidade dos personagens.

>> Confira a participação de Marlon James na Flip

>> Ouça a playlist inspirada em Breve história de sete assassinatos

 

Marco Antonio Barbosa é jornalista desde 1996. Passou pelas redações de Jornal do Brasil, Extra, Veja Rio e Globo.com, escrevendo sobre cultura, mídia e comportamento. Hoje publica textos inéditos em https://medium.com/telhado-de-vidro.

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