Artigos

Kim Jiyoung: uma mulher que é várias outras

20 / maio / 2022

*Por Daniela Mazur

Kim Jiyoung, nascida em 1982 (82년생 김지영) é considerado um livro polêmico na Coreia do Sul. Para mim, uma pesquisadora da comunicação, é sempre interessante observar especialmente os produtos culturais que causam reações, como estranhamento, felicidade ou medo. Em geral, é nesses produtos que encontramos mais significados e possibilidades de análise, já que falam sobre a sociedade ao nosso redor. O livro da autora sul-coreana Cho Nam-Joo nos apresenta um universo rico de interpretações e de feridas abertas — que, apesar de ser ambientado do outro lado do mundo, pulsam intimamente aqui. Kim Jiyoung é uma mulher e a obra enfoca uma trajetória feminina, o que, por si só, incomoda. Em um mundo majoritariamente sustentado por jogos de poder masculinos, falar sobre as dores femininas e sob um  ponto de vista direto, cru e pulsante é capaz de fazer a terra tremer sob os nossos pés. Esse é o poder do livro.

Jiyoung é uma força da natureza, mas cotidiana em seus fenômenos. Luta para ser ela própria enquanto a sociedade flui na direção oposta. Desde que nasceu, todas as mulheres ao seu redor também lutavam. Então, ela aprendeu naturalmente a fazer o mesmo. Sua força não reside em nada fora do normal, baseia-se no dia a dia, em um problema por vez, até que ela é tomada por outras existências. Em uma manhã de baengno (“orvalho branco”), Jiyoung começa a personificar, como se possuída, outras mulheres — vivas ou mortas. O marido de Jiyoung se assusta e a incentiva a ir a um psiquiatra. As histórias que dão forma ao livro são produtos dos relatos dela, que desenham a vida dessa mulher que sente na pele o peso de um sistema que não a abraça enquanto indivíduo, não importa qual papel ela esteja desempenhando perante a sociedade. Filha, irmã, aluna, namorada, profissional, esposa, nora, mãe, ela sempre sofreu limitações e perigos por ser mulher.

Lançado na Coreia do Sul em 2016, o livro chega ao Brasil em 2022 com um timing perfeito. Além do debate sobre o lugar da mulher na sociedade e o feminismo estarem em voga em ambos os países, um novo presidente da república foi empossado na Coreia do Sul, em maio de 2022, após vencer as eleições com discursos de campanha capitalizando o movimento antifeminista. Yoon Suk-yeol  inflamou cidadãos descontentes com as modestas vitórias das mulheres durante os últimos anos no país. De partido conservador, atraiu homens que estão com medo de perder seus privilégios e são críticos diretos das mulheres que manifestam suas indignações. A eleição de Yoon Suk-yeol é simbólica sobre a desigualdade de gênero na Coreia do Sul, assim como as críticas do movimento antifeminista ao sucesso de Kim Jiyoung, nascida em 1982.

Está nos planos do atual presidente, por exemplo, a abolição do Ministério da Igualdade de Gênero e Família, dando sequência às suas declarações inflamadas sobre não acreditar que exista discriminação sistêmica e estrutural baseada em gênero no país e que a baixa taxa de natalidade nacional seria culpa do movimento feminista. Contudo, os dados mostram o contrário: segundo o levantamento de 2021 da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a Coreia do Sul se encontra na 123ª posição entre 156 países em participação econômica e oportunidade profissional feminina, além de estar na 116ª posição em igualdade salarial entre cargos similares. Ademais, especialmente desde 2016, as manifestações frente às injustiças e aos feminicídios aumentaram, como o levante ocorrido após o caso do homem que aleatoriamente assassinou uma jovem mulher em Gangnam porque, segundo ele, “odiava as mulheres por sempre o ignorarem”. Esse horripilante acontecimento aqueceu o “renascimento do feminismo” sul-coreano, que, em 2018, levou à tona o movimento #MeToo no país e também os protestos com a presença de mais de 40 mil mulheres contra o sexismo e o assédio sexual envolvendo câmeras escondidas em locais públicos que alimentavam ilegalmente sites de pornografia. A autora Cho Nam-Joo se mostra totalmente a par da realidade das mulheres sul-coreanas: Jiyoung vive assédios, falta de oportunidades no mercado de trabalho, disparidades salariais, dislegitimizações, estigmas e pressões familiares e maternas. Não só ela, mas todas as mulheres do seu convívio.

 

A força avassaladora do simples fato de ser mulher

“As garotas guardavam sem perceber, no fundo do coração, experiências repulsivas e assustadoras com homens” e, “enquanto os agressores tinham medo de perder uma pequena parte do privilégio, as vítimas corriam o risco de perder tudo”. Esses dois trechos do livro definem bem o processo do levante do feminismo e também do antifeminismo na Coreia do Sul. Quando citei no início do texto que Kim Jiyoung, nascida em 1982 foi muito polêmico, me referia justamente ao cenário que se apresentou logo após o lançamento: a crescente visibilidade da luta pela igualdade de gênero e, como consequência, das reações contrárias ao movimento por parte de homens que o consideravam discriminatório — como se eles próprios fossem vítimas. Enraivecidos por possíveis perdas de privilégios, atacaram celebridades que eram vistas com o livro ou que se posicionavam como feministas, caso da integrante Irene do grupo de K-pop Red Velvet, que recebeu intensos ataques on-line após dizer estar lendo o livro. 

Como a Coreia do Sul se transformou em um polo global de produção e exportação de cultura pop — o fenômeno cultural Onda Coreana (Hallyu) —, o lugar da midiatização e das celebridades se tornou um destaque para aqueles que renegam os debates sobre o feminismo no país. Tanto que, a adaptação do livro para um filme (que, diga-se de passagem, foi sucesso de bilheteria), que contou com respeitadas e globais estrelas da Hallyu, como Jung Yu-mi (Invasão Zumbi; Enfermeira Exorcista) e Gong Yoo (Invasão Zumbi; O Mar da Tranquilidade), sofreu fortes críticas logo que a notícia das gravações foi revelada.

A trajetória de Kim Jiyoung, contada nesse livro excelente e fluido, emociona em sua simplicidade e proximidade, apesar de trazer tópicos extremamente complexos e difíceis de digerir. A vida da protagonista e das mulheres que carrega consigo revela como a experiência feminina é dolorosa e nos faz refletir sobre a nossa própria jornada. É impressionante como uma mulher pode ser várias. Eu sou eu mesma, mas também sou minha mãe, minhas primas, tias, avós, amigas, alunas, professoras… A gente carrega dores compartilhadas, algumas mais dolorosas do que outras. O peso nas costas com certeza não é mensurado da mesma forma com tantas variantes em jogo, mas, sem dúvidas, nós somos o produto de várias mulheres que vieram antes de nós. Então, o processo de Kim Jiyoung, que começa a incorporar as outras que a formaram, é uma metáfora da própria experiência feminina. Quantas vezes fomos várias? Somos cobradas a sermos mais, mas sempre dentro dos limites impostos pela sociedade e pelos privilegiados. O poder tem sempre o mesmo objetivo de se manter. É ganancioso, não pretende perder espaço, engole viva qualquer possibilidade de mudança no status quo. Tudo o que liberta assusta os opressores, todo sinal de esperança e de mudança desespera os que sempre se privilegiaram do sistema vigente. Dessa forma, Kim Jiyoung é eu, é você, pode ser todas. E, embora a experiência dela seja a de uma mulher sul-coreana, nos enxergamos nela. Porque, independentemente de identidades  nacionais e culturais, Jiyoung representa a luta direta e indireta por uma liberdade real e justa. E isso, sem dúvidas, nos une tanto aqui quanto agora.

 

*Daniela Mazur é doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFF. Integrante do MidiÁsia – Grupo de Pesquisa em Mídia e Cultura Asiática Contemporânea e do TeleVisões – Núcleo de Pesquisa em Televisão e Novas Mídias, sua pesquisa é focada nos estudos da Onda Coreana (Hallyu) e na ascensão midiática de polos periféricos globais.

Tags , , , .

Saiba mais sobre os livros

Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *