Joaquim Ferreira dos Santos

Penas ferinas

12 / janeiro / 2017

 

Daniel Más, foto de Ronaldo Câmara

Daniel Más era uma víbora espanhola que escrevia, no final dos anos 1970, a coluna social do Correio da Manhã. Seu nome precisa ser sempre lembrado quando se fala da última geração do moderno colunismo social brasileiro, aquela que veio, com humor rascante, para acabar com a instituição inventada por Jacinto de Thormes e Ibrahim Sued. Zózimo Barrozo do Amaral foi o maior de todos, com sua pena elegante e ao mesmo tempo ferina. Daniel Más fez o que pôde, com mais estridência, para demolir a ridicularia das velhas senhoras que ostentavam brilhantes de origem duvidosa ao lado dos maridos em black-tie

É verdade que essas vítimas de vez em quando faziam justiça com as próprias mãos — e sobrava uns cascudos, às vezes mais, no cocoruto do colunista do Correio. Daniel era o típico fraco e abusado, mas divertidíssimo.

O banqueiro Antonio Carlos de Almeida Braga, do Bradesco, cruzou com ele no Santos Dumont e e deu-lhe os tais cascudos de praxe. Dias antes tinha sido chamado de “gordo” numa nota. No dia seguinte ao encontro no aeroporto, Braguinha viu no jornal uma correção típica do estilo de Daniel Más: “O banqueiro Braguinha está magro como um sílfide.” E aí só restou a Braguinha cair na gargalhada.

Daniel Más estava no Correio na época em que Zózimo estreou no Jornal do Brasil, em 1969. Em São Paulo, com o mesmo estilo de descrer na humanidade, brilhava Telmo Martino. Os dois são personagens de destaque no meu novo livro, Enquanto houver champanhe, há esperança. Se os colunistas sociais anteriores ficavam deslumbrados com os ricos e lavavam os dedos em lavanda antes de batucar seus elogios, Daniel e Telmo tratavam-nos sem cerimônia. Zózimo, como era o mais elegante, e também gostava de um pugilato quando ele se apresentava, geralmente com torcedores rivais do Flamengo, não apanhou. 

Por causa de sua coluna serelepe, que dava um sacode no gênero, Daniel Más recebeu piparotes de variadas ordens de violência. Seus algozes eram grã-finos como Paulo Marcondes Ferraz, José Colagrossi e Eric Waechter. No dia seguinte aos cascudos, para esconder essas avarias, ele chegava à redação com óculos escuros da melhor grife. Era sua vingança. Pulava na mesa e gritava:

— Chegou o sol, e o sol sou eu.

Era um tempo em que as colunas não chamavam ninguém de “boa praça” nem “meu querido”, um expediente comum nas hoje porque o colunista sabe que todo mundo gosta desses carinhos e, em troca, o homenageado pode lhe depositar alguma informação no colo para a coluna de amanhã. É dura a vida do colunista. Daniel Más, quando não tinha as notas verdadeiras, inventava outras. Aos poucos, foi ficando sozinho, as portas batendo-lhe na cara, e acabou trocando o colunismo pelo roteiro de novelas. Emplacou algumas na TV Globo até falecer, em 1989. 

Era amigo de Zózimo e, na boa tradição das amizades inteligentes, sacaneavam-se. “O colunista Daniel Más, na plateia do Teatro Municipal, vendo Ella Fitzgerald, estava elegante no seu conjunto de colete e terno roxo-quaresma”, escreveu Zózimo, como se alguém pudesse ficar elegante num charivari cromático daqueles. No dia seguinte, estava no Correio a resposta de Daniel. “Zózimo Barrozo do Amaral finalmente aparou o bigode”, alfinetou, achando old fashioned a mania do amigo de cultivar um bigode que não se via mais em rosto jovem.

A foto de Daniel que ilustra este post (com a língua de fora, é claro, tripudiando da humanidade sem graça) é de Ronaldo Câmara, um dos acervos mais preciosos da gente que fez a história do Rio de Janeiro entre as décadas de 1960 e 80. Ronaldo fotografou todo mundo que importava naquele período. Íntimo de seus personagens, flagrava-os sem pose. A propósito, ele clicou Daniel Más fazendo um striptease — mas isso fica para um próximo post. Sempre será preciso renovar a lição de Daniel, de Zózimo e das fotos de Ronaldo Câmara: enquanto houve humor, há esperança.

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