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Como retomar a racionalidade na era da pós-verdade

3 / maio / 2022

Por João Lourenço*

Na última década, termos como fake news e pós-verdade se tornaram bastante populares. “Pós-verdade” chegou a ser eleita a palavra do ano, em 2016, pelo icônico dicionário Oxford. Esses termos ajudam a explicar o espírito deste nosso tempo, marcado pela disseminação de opiniões sem fundamento e pela valorização de crenças pessoais: “Acredito, logo estou certo.”

Esse tipo de pensamento fundamenta teorias da conspiração e o surgimento de grupos extremistas que se espalham pela internet. O mundo pós-verdade também é um mundo pós-racional, no qual as emoções se sobrepõem aos fatos objetivos. A tomada de decisões precipitadas e a generalização de ideias pessoais camufladas de verdade é um dos pontos que intrigaram o psicólogo cognitivo Steven Pinker

Em seu novo livro, Racionalidade, Pinker procura entender por que há tanta irracionalidade no mundo. A curiosidade do autor ganhou mais intensidade nos últimos anos, quando tudo parece ter virado de pernas para o ar. Professor e pesquisador em Harvard, Pinker levou para a sala de aula o interesse pelas contradições que pautam o comportamento humano. O autor percebeu que as questões de racionalidade empolgavam os alunos, e logo esse se tornou um de seus seminários mais procurados. Agora, neste livro, ele explica em uma linguagem acessível diversos conceitos que elucidam como a humanidade chegou até esse mundo de pós-verdades e fake news. Além de exemplificar os conceitos, Pinker oferece soluções que podem ser aplicadas no dia a dia. 

 

Racionalidade: por que parece estar em falta e por que é importante?

Ao contrário da emoção, as questões que envolvem o racional não são atraentes. Seja na literatura ou na arte, há inúmeros exemplos de motivações baseadas nos desejos da paixão. A lógica de seguir a intuição, “escutar o coração”, está tão enraizada na cultura e no imaginário popular que essa noção bloqueia a racionalidade.

Steven Pinker ressalta que o cérebro humano se desenvolveu para a sobrevivência. Ou seja, diante de uma situação de perigo, em vez de analisar as opções por meio da lógica e do pensamento crítico, procuramos uma saída fácil e rápida. Isso acontece na natureza o tempo todo. Animais não humanos geralmente tomam posse daquilo que está disponível no momento, não há tempo para deliberação. Já o animal humano, na medida em que aprimorou os mecanismos cognitivos, parece ter entrado em uma fase de hibernação – preguiçosa e irracional. 

Mas nem tudo está perdido. Para Pinker, até mesmo as pessoas mais irracionais são capazes de fugir de atalhos mentais e fazer escolhas racionais. Para isso, ele sugere um melhor aproveitamento das ferramentas de raciocínio que foram desenvolvidas pelo homem. Não basta apenas criar essas ferramentas, é preciso fazer uso delas no cotidiano. De acordo com o psicólogo, está na hora de retomar tudo aquilo que os melhores pensadores descobriram ao longo dos séculos: lógica, pensamento crítico, probabilidade, correlação e causalidade. A partir dessa apropriação, o autor sugere que a humanidade vai conseguir atualizar as crenças pessoais por meio de um filtro “mais racional”’. 

Pinker também aponta que o meio científico e acadêmico precisa de uma reestruturação antes de publicar estudos que possam colaborar com a sustentação de crenças pessoais. Para exemplificar, pense na luta ideológica sobre a covid-19. Enquanto, por um lado, há cientistas que romperam barreiras culturais para unir forças e criar uma vacina em tempo recorde, do outro, há muitas pessoas que preferem não se vacinar. O autor nota que a decisão sobre acreditar na eficácia da vacina tem sido feita a partir de crenças pessoais e políticas. Ou seja, milhares de pessoas não utilizam os dados básicos disponíveis e não incorporam essas informações em seus processos de raciocínio lógico. Ele afirma que mesmo pessoas instruídas, como cientistas, cometem o erro de divulgar pesquisas tendenciosas que têm o único objetivo de sustentar e atualizar as suas próprias crenças. E é aqui que mora o perigo: ao mesmo tempo que uma pessoa irracional pode tomar decisões racionais, uma pessoa aparentemente racional, baseada na ciência, também pode levar muitas pessoas a cometerem atos irracionais.

No livro, o cientista demonstra e defende a racionalidade como base para uma sociedade mais objetiva, capaz de questionar, usar a lógica e prezar pela verdade no lugar de opiniões e crenças subjetivas. Para Pinker, a racionalidade leva a melhores escolhas nas esferas pública e privada. O autor sustenta a racionalidade como uma máquina que move o progresso moral e a justiça social. 

 

Raciocínio bayesiano 

Basicamente, o teorema de Bayes descreve a probabilidade de um determinado evento acontecer com base em conhecimento disponível. A probabilidade é alterada à medida que novas evidências são obtidas. Também conhecido como lei de Bayes, esse raciocínio está presente na informática, na inteligência artificial e, segundo Pinker, em nossos cérebros. No nosso dia a dia, isso se traduz nos códigos que o Google e os algoritmos usam para oferecer respostas, notícias e produtos específicos baseados no conhecimento (a priori) que detém de cada usuário. Neste caso: quanto mais essas ferramentas conhecem você, melhor são as opções fornecidas? Pinker discorda!  

Segundo o autor, os algoritmos nos prendem em uma bolha ideológica. Pinker afirma que o ser humano procura evidências que confirmem suas crenças ao invés de procurar evidências contrárias. Os algoritmos facilitam o consumo daquilo que condiz com nossas convicções. Assim, é como se o raciocínio entrasse em declínio, no piloto automático. Pinker, então, defende que o cérebro precisa incorporar os algoritmos bayesianos na hora de perceber, deliberar e tomar decisões. Ele acredita que devemos abandonar a zona de conforto que reforça as nossas crenças. Isso requer prática e esforço. Pinker sugere procurar fontes alternativas de informação antes de tomar decisões. Isso vai além de pesquisas no Google. 

O autor aconselha criar uma ponte de comunicação com aqueles que têm pensamento contrário. Resumindo: em vez de excluir tudo que difere de opiniões pessoais, sejam elas políticas ou morais, também é preciso conhecer o lado oposto. Ao colocar os lados em perspectiva, as probabilidades são atualizadas de acordo com as novas evidências observadas. Ou seja: é preciso respirar novos ares, dialogar com as diferenças antes de atualizar as concepções. Por esse caminho, Pinker argumenta que as decisões, previsões e insights se tornam mais racionais. E todo mundo sai ganhando! 

 

Risco e recompensa 

O dilema entre risco e recompensa é outro tópico abordado em Racionalidade. Para o autor, a humanidade se encontra em um período marcado por recompensas instantâneas. Seja em um investimento de alto risco ou na escolha de permanecer solteiro, ele defende que, diante de decisões, muitos não avaliam todos os dados à disposição. Pinker ressalta que as recompensas instantâneas geralmente acompanham riscos, que são ignorados no “calor do momento” – novamente, a emoção se sobrepõe à razão. 

Veja o exemplo das redes sociais. Likes e emojis foram criados para gerar um sentimento de recompensa e aprovação instantânea no usuário. Esse dado é curioso, pois a maioria das pessoas que frequenta as redes tem conhecimento sobre os problemas decorrentes das longas horas ociosas na web. O cérebro, porém, tem sido programado para desejar sempre uma dose extra de dopamina. Para Pinker, essa nova configuração do cérebro, acostumada a estímulos e recompensas rápidas, produz comportamentos preguiçosos e reativos. Nessa lógica, tudo que não agrada precisa ser deletado ou ignorado.

Tal mentalidade de recompensa instantânea se traduz em ações do cotidiano, nas quais os riscos são ofuscados. Pinker pergunta: “Você alguma vez poupou um minuto na estrada dirigindo acima do limite de velocidade? Ou cedeu à impaciência e checou suas mensagens de texto enquanto atravessava a rua?” Essas perguntas servem para o leitor ponderar sobre o nível de racionalidade utilizado nas atividades corriqueiras. Para Pinker, a tomada de decisão racional não é para ser aplicada apenas diante de grandes mudanças; ela serve para todas as atividades banais do cotidiano. Em tempos de incerteza, o autor defende que é preciso integrar esse conhecimento da lógica. Esse é um músculo presente em todos os humanos, mas ele só funciona após constante atualização. Por meio dessa multiplicação mental das probabilidades, Pinker acredita que é possível alcançar um mundo menos polarizado, que valoriza a razão. 

Em resumo: não há como fugir da matemática e da lógica. Racionalidade, de Steven Pinker, utiliza exemplos que passam pela lógica formal, teoria dos jogos, estatística e raciocínio. Todos apresentados em tópicos atraentes e de fácil compreensão – mesmo para aqueles que ainda somam e subtraem nos dedos. 

*João Lourenço é jornalista. Passou pela redação da FFWMAG, colaborou com a Harper’s Bazaar e com a ABD Conceitual, entre outras publicações estrangeiras de moda e design. Atualmente está em Nova York escrevendo seu primeiro romance.

Comentários

Uma resposta para “Como retomar a racionalidade na era da pós-verdade

  1. Excelente artigo, uma elaboração consistente, expressiva, muito fascinante…

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