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Os afetos, as memórias

1 / junho / 2016

Por Elisa Menezes*blogafetos

“Ser pago para ler”, como costuma ser simplificado o ofício de fazer livros, nem sempre é tão divertido quanto pode parecer à primeira vista. Muitas vezes não se tem o privilégio ou a sorte de trabalhar com o seu gênero ou autor favorito, e às vezes é impossível conjugar desejo e realidade: a vontade é de poesia, mas o que nos cabe é ficção científica, ou vice-versa.

Quando a Rebeca Bolite me perguntou se eu toparia fazer o copidesque de espanhol [língua adorada] de um livro de literatura contemporânea [fome com vontade de comer] chamado Os afetos [que título lindo], de um autor latino-americano [sempre bom ler os vizinhos] inédito no Brasil e eleito pela revista Granta, em 2010, um dos 22 melhores escritores de língua espanhola [¡la hostia!], traduzido pelo José Geraldo Couto [craque], com um prazo bastante confortável para a entrega [Rebeca, te amo], é claro que eu disse sim. De antemão o trabalho parecia ser dos melhores.

Assim que comecei a trabalhar no material de Os afetos, editora e leitora comemoraram dentro de mim, pois esse é um daqueles casos em que é possível se sentir privilegiado por ser pago para ler. E como a produção de um livro leva tempo, passei meses comentando com os mais próximos como havia gostado da escrita elegante e concisa de Rodrigo Hasbún, o quanto adoraria ler outras obras suas, como ele merecia ser descoberto por mais gente, ser convidado para a Flip.

Os afetos é um romance curto, narrado por diferentes vozes, que acompanha durante cinquenta anos a família Ertl, formada pelo documentarista e explorador Hans, sua mulher, Aurelia, e as três filhas: Monika, Heidi e Trixi. Por meio de seus relatos, assim como os de outros personagens relacionados a eles, como maridos e amantes, Rodrigo Hasbún cria um mosaico de memórias desbotadas que aos poucos revela ao leitor a saga da família de origem alemã radicada na Bolívia a partir de 1955. Uma combinação improvável e irresistível como as tortilhas com chucrute que os personagens comem durante uma expedição andina.

Quando acaba um capítulo, uma memória, sentimo-nos órfãos, queremos seguir com aqueles personagens, mas logo vem a recompensa, passamos então a enxergar pelos olhos de outro narrador, outro ponto de vista, só que agora imbuídos de sentimentos e recordações. E, assim, de relato em relato, Hasbún vai construindo a história dos Ertl e da Bolívia, com as suas desigualdades sociais, a ditadura e a guerrilha.

A escrita concisa e elegante de Hasbún, aquela que me conquistou, consegue condensar em 128 páginas características de um romance de formação, dados biográficos e fatos históricos – os Ertl realmente existiram, embora o autor advirta que ele apenas se inspirou na família e na história de seu país natal. Tudo isso em uma ficção envolvente, que mantém o leitor submerso nos pensamentos dos personagens.

A ausência de travessões e aspas para falas, diálogos e pensamentos contribui para essa imersão e também para a sensação de estarmos vivenciando um fluxo de ideias e de sentimentos que, claro, nem sempre são precisos, e sim sorrateiros como costumam ser as lembranças que guardamos e reinventamos ao longo da vida. “Não é certo que a memória seja um lugar seguro. Nela também as coisas se desfiguram e se perdem. Nela também terminamos nos afastando das pessoas que mais amamos.”

Assim, acompanhamos o crescimento das filhas, a descoberta do primeiro amor, o despertar para o outro, para a vida adulta, a deterioração das relações e como memória e sentimentos vão sendo corroídos pelo tempo. A desintegração dos laços familiares, a distância gigantesca que podemos sentir em relação àqueles que são mais próximos e também os elos que construímos com estranhos e com o mundo permeiam toda a história.

Contar tanto em um espaço tão curto é antes uma tentativa – muito bem realizada – de demonstrar como a memória é construída e ressignificada do que uma escolha arbitrária de alguém que não quis se aventurar em um romance de maior fôlego. As memórias desbotadas que Hasbún nos apresenta são valiosas tanto por aquilo que revelam quanto pelas lacunas que oferecem.

É muito simbólico que justo esses exploradores que viveram anos às voltas com câmeras e registros, preparando e documentando expedições, sejam incapazes de precisar ou entender suas próprias trajetórias. Há filmes que se perdem durante a história e há também a decisão voluntária de uma das personagens, “que nunca foi nostálgica”, de deixar para trás fotografias, cartas e diários. Para outra, no entanto, que possui uma extrema dificuldade em se “ancorar à realidade”, a nostalgia servia “para sentir que havia valido a pena viver e para dar maior densidade ao presente”.

Nesse jogo de imprecisões, a nostalgia e a melancolia dos narradores vão amarelando as páginas do livro, lembrando-nos o tempo inteiro que aqueles relatos não são totalmente confiáveis. “Disse a mim mesma que era natural deixar de amar. Disse a mim mesma que na realidade o que era pouco natural era continuar amando. Ou talvez não, talvez eu tenha me dito isso muito depois.”

Dessa forma, Os afetos oferece diferentes camadas de leitura, e, ao final do livro, nos sentimos “manchados” – para usar uma das expressões tão bonitas e precisas que o autor emprega – por aqueles personagens, levamos conosco suas lembranças e esquecimentos.

*Elisa Menezes é editora e em 2015 publicou Oceanário, pela Pipoca Press. É autora ainda do blog bissexto O céu do Tejo.

Comentários

5 Respostas para “Os afetos, as memórias

  1. Se o livro for tão bonito quanto seu jeito de falar dele, vou comprar amanhã. Hoje. Agorinha.

  2. eu simplesmente adorei esse livro. a narrativa se passa rápido, talvez uma metáfora à vida real. super recomendo.

  3. O apelo visual da capa de um livro é a primeira sedução. Uma apresentação como a sua é enamorar – se plenamente. Decerto o livro é bom, como bem o disse, mas o encantamento a que seu texto conduz é certamente decisivo para a leitura da obra.

  4. Lindo texto, comprarei o livro só por causa dele. Já está a venda?

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