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Hawking, o vingador de Einstein

30 / março / 2016

Por Amâncio Friaça*

Em Minha breve história, Stephen Hawking confessa que na escola fazia a lição de casa sem o menor capricho e que sua caligrafia era o horror dos professores. Na época, um colega chegou a apostar um saco de balas com outro amigo de que ele nunca seria ninguém. No entanto, Hawking acabou sendo apelidado de Einstein e, com o seu usual senso de humor, o cientista deduz que os amigos “viram sinais de algo melhor em mim”. No fim das contas, parece que seus colegas tinham mesmo razão, e o amigo da onça acabou perdendo a aposta.

O pressentimento que os colegas bonzinhos de Hawking tiveram estava espetacularmente correto. O companheirismo deles justifica o exagero de chamá-lo de Einstein, mas, na verdade, Hawking pode ser considerado uma espécie de vingador de Einstein.

Quando começou o doutorado em Cambridge, em 1962, o plano de Stephen Hawking era trabalhar com o astrofísico Fred Hoyle, que havia desenvolvido um modelo cosmológico: a teoria do estado estacionário. Na época, a cosmologia era vista como um campo de estudo suspeito — o tópico quente era a física de partículas. Já a cosmologia e a gravitação eram áreas negligenciadas porque se acreditava que tudo já tinha sido feito, como no caso da gravitação, ou que nada podia ser provado, como na cosmologia.

Esses dois campos foram abertos por Albert Einstein durante a Primeira Guerra Mundial. Em 1915, depois de quase uma década de esforços extenuantes, Einstein incorporou de modo definitivo a gravitação na teoria da relatividade e inaugurou a relatividade geral. Os resultados foram reunidos no genial artigo “Fundamentos da teoria da relatividade geral”, publicado na revista científica alemã Annalen der Physik no ano seguinte.

E a revolução de Einstein prossegue. Em 1917, ele ressuscitou a cosmologia com seu extraordinário trabalho “Considerações cosmológicas sobre a relatividade geral”. Pela primeira vez desde o Renascimento, voltou-se a falar em cosmologia, ou seja, o estudo do universo como um todo, mas desta vez dentro de um arcabouço rigoroso e abrangente, a teoria da relatividade geral.

No entanto, no começo da década de 1960, a imensa contribuição de Einstein à ciência parecia confinada às glórias do passado. Havia a impressão de que a cosmologia não ofereceria testes que pudessem distinguir entre um modelo e outro. Depois da descoberta da expansão do universo, na década de 1920, os estudos cosmológicos pareciam ter entrado em um marasmo. E mais do que isso: a própria teoria da gravitação, baseada na teoria da relatividade geral, parecia não ter experimentos, e isso levava a crer que ela tinha pouco contato com o mundo real. Os pesquisadores se contentavam em obter alguma solução para as equações do campo gravitacional e não se perguntavam sobre o significado físico das soluções.

Nesse momento, Hawking percebeu que havia, sim, muito a ser feito no campo da gravitação. Havia uma teoria muito bem definida, a teoria da relatividade geral, mas suas soluções eram extremamente difíceis de serem obtidas. Com sua coragem característica, ele se dedicou ao destrinchamento da matemática complicadíssima da relatividade, mas sem nunca desistir da busca por significados físicos para as soluções das equações do campo da relatividade geral. Nesses estudos, o que norteava Hawking era a cosmologia, que, apesar das aparências, estava passando por uma revolução. O duplo legado de Einstein, o da gravitação e o da cosmologia, estava muito vivo em Hawking.

Na verdade, Hawking percebeu que a maré estava mudando em relação à cosmologia e à gravitação — e ele não era o único. Nos anos 1960, a astronomia experimentou um extraordinário desenvolvimento. Isso levou a um reavivamento do interesse na gravitação, pois é nas escalas astronômicas que a força da gravidade se torna cada vez mais dominante. Os astrônomos descobriram um verdadeiro zoológico de corpos celestes, como pares de estrelas com emissão de raios X, radiogaláxias e quasares. Cada um desses objetos permitiu testar pela primeira vez certos aspectos da teoria da gravitação de Einstein, como, por exemplo, a natureza dos buracos negros.

Naqueles seus anos dourados em Cambridge, Hawking viu a radioastronomia abalar a teoria do estado estacionário de Fred Hoyle — cientista que quase foi orientador de Hawking. Nessa teoria, o universo teria a mesma aparência em qualquer época e não haveria um início. Já a teoria oposta, a do Big Bang, dizia que o universo teria um princípio e que no passado teria sido cada vez mais denso e quente. Seu principal defensor era o ucraniano naturalizado americano George Gamow. Hoyle, com seu humor britânico, atacava sem piedade Gamow, o que não adiantava muito, porque Gamow era um grande piadista.

No entanto, na mesma Cambridge de Hoyle, o grupo do radioastrônomo Martin Ryle operava um poderoso radiotelescópio e, em 1963, seus dados sobre radiogaláxias já indicavam que a densidade do universo tinha sido maior no passado distante, o que contrariava o modelo do estado estacionário.

O golpe final contra a teoria de Hoyle, também desferido pela radioastronomia, veio do outro lado do Atlântico, em 1965. Em Nova Jersey, Arno Penzias e Robert Wilson tentavam calibrar uma antena de micro-ondas para ser usada como radiotelescópio, mas havia um ruído persistente. Depois se deram conta do que se tratava. Era uma fraca radiação de fundo de micro-ondas cuja origem era um estado extremamente quente do universo muito jovem. Gamow, o pai da teoria do Big Bang, estava certíssimo. Ele havia previsto esse fundo de micro-ondas do universo primordial em 1948. Hawking diz que foi uma sorte ele não ter sido aluno de Hoyle, senão teria que defender a teoria do estado estacionário.

Contudo, Hawking não teve dificuldades em defender Einstein. A primeira teoria cosmológica formulada dentro do contexto da ciência moderna, a de Einstein, em 1917, era de um universo estático. Porém, na época em que Einstein escreveu o seu artigo, isso era muito razoável, pois a astronomia mal havia saído da nossa galáxia, e a existência de outras galáxias era considerada especulativa pela maioria dos astrônomos.

Foi apenas em 1922 que o astrônomo americano Edwin Hubble obteve evidências de que a nebulosa de Andrômeda era uma galáxia de tamanho comparável à Via Láctea. Em 1929, Hubble e Humason descobriram que quanto maior for a distância de uma galáxia, maior será a sua velocidade de afastamento em relação à Via Láctea. Mas foi o padre e astrônomo belga Georges Lemaître o primeiro a interpretar essas observações como devidas à expansão do universo.

Posteriormente, Einstein elaborou junto com o astrônomo e matemático holandês Willem de Sitter seu próprio modelo de universo em expansão, o modelo Einstein-De Sitter. Como bem assinala Hawking, a teoria da relatividade geral de Einstein permite construir muitas cosmologias, entre elas aquela que se aplica a este nosso universo, que está em expansão agora, mas outros possíveis universos continuam a obedecer à teoria da relatividade geral, mas com condições iniciais e proporção de componentes diferentes. Assim, há lugar, nestes outros universos, para fases de expansão, de contração e de relativa pausa.

Para um Einstein confinado na Alemanha da Primeira Guerra Mundial, não há como saber qual universo é o nosso, e a sua escolha de um universo estático seria a escolha com um mínimo de pressupostos. Como diz Hawking na introdução da sua tese de doutorado: “A ideia de que o universo está expandindo tem uma origem recente. Todas as antigas cosmologias eram essencialmente estacionárias, e mesmo Einstein, cuja teoria da relatividade é a base de quase todos os desenvolvimentos recentes em cosmologia, achou natural sugerir um modelo estático do universo.”

Por fim, talvez o maior tributo de Hawking a Einstein seja a busca de uma Teoria de Tudo. Quando Hawking decidiu buscar uma teoria final que explicasse completamente e conectasse todos os aspectos físicos do universo, a proposta de Einstein nesse sentido, que ele chamou teoria do campo unificado, era vista como um esforço melancólico fadado ao insucesso. De novo, Hawking assume a coragem titânica de Einstein e parte para elaborar a Teoria de Tudo.  Mas há algo mais do que coragem. Há a paciência, aquela que temos quando vemos que a tarefa vai exigir um esforço por muito, muito tempo. Basta lembrar os cem anos que se passaram entre a primeira previsão das ondas gravitacionais por Einstein em 1916 e a sua confirmação pelo observatório LIGO em 2016.  Com o objetivo de uma compreensão unificada do universo, desde Einstein, e passando por Hawking, muitas gerações desenvolveram instrumentos matemáticos cada vez mais intrincados, laboratórios cada vez mais poderosos com experimentos cada vez mais delicados e observatórios astronômicos cada vez mais sensíveis. E estamos muito distantes do objetivo. Contudo, as escalas de tempo de bilhões de anos em cosmologia tornam muito mais leves as décadas ou séculos que levamos para cumprir uma missão em ciência.

 

Amâncio Friaça é astrônomo do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo. Trabalha em astrobiologia, cosmologia, evolução química do universo e nas relações entre astronomia, cultura e educação. Foi o responsável pela revisão técnica da edição revista de Uma breve história do tempo e da nova edição de O universo numa casca de noz, ambos lançados pela Intrínseca.

Comentários

2 Respostas para “Hawking, o vingador de Einstein

  1. Um gênio que nos deu lições de vida. Soube vencer doença irreversível ao mesmo tempo em que nos conduzia pelos intrincados e misteriosos caminhos do Universo. Humano jamais esquecerá sua inestimável contribuição à ciência.

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