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Pelo direito de ser uma mulher difícil

23 / agosto / 2021

Por Iana Villela*

Quando foi a última vez que você foi escrota? E olha que a pergunta não é nem se você já foi, é quando foi a última vez. Pode buscar na sua mente, não tem ninguém olhando. Quando foi a última vez que você resolveu esticar a ética até o limite, até quase arrebentar (e talvez tenha arrebentado), em uma situação?

É muito difícil olhar para si e entender que nem tudo que nós temos a oferecer ao mundo são sabedorias, epifanias e felicidade. Somos seres humanos e sofremos de todas as mesquinharias e traumas que cabem a cada um de nós. Nossas experiências, que muitas vezes não são as melhores, entremeiam o que nos forma, dando corpo a um tecido com linhas de todos os tipos. Inclusive, escrotos.

Provavelmente, é nossa dificuldade em admitir para nós mesmos que o nosso núcleo emocional não é um apanhado de tudo que há de melhor na face da Terra que torna tão árduo lidar com as famosas mulheres difíceis da dramaturgia. Elas, com as atitudes de caráter duvidoso, grosseria não apologética, sexualidade afrontosa e completa falta de filtro, nos colocam de frente com nossas supostas falhas.

A personagem de Phoebe Waller-Bridge na série Fleabag é um exemplo clássico: pervertida, falida e desbocada, ela é tudo que tememos ser. Objetifica as pessoas com as quais se relaciona, rouba a escultura valiosa da madrasta, aterroriza a irmã. E a gente, rindo de forma cúmplice, se questiona: por quê? A cena que entrega tudo é a em que a melhor amiga da personagem, Boo, comenta a notícia de que uma criança havia sido presa por introduzir um lápis no ânus de um hamster. Boo questiona a prisão e diz que o infrator precisava ser acolhido e cuidado, porque “ninguém feliz faz uma coisa horrível dessas”.

Mia Warren, uma das protagonistas de Pequenos incêndios por toda parte, não nos impacta com deboche, como acontece em Fleabag, mas sim com um desdém tão constante que parece fazer parte do contorno do seu rosto. Nem mesmo a cortesia de Elena, uma das mulheres mais influentes da cidade, é capaz de penetrar o ar de desprezo da artista plástica, que trabalha como garçonete para sustentar a família e, também, para camuflar um segredo guardado a sete chaves. O ditado diz que quem desdenha quer comprar”, mas, no caso de Mia, quem desdenha traz dolorosos (e valiosos) aprendizados sobre a vida. Racismo, disparidade social e maternidade são o combustível para o embate entre as duas personagens principais.

Já Susan, do livro Susan não quer saber do amor, passa pelo trauma da morte da mãe em meio a uma gravidez-surpresa aos 45 anos de idade. Ignora todos esses acontecimentos, vai trabalhar e exige, de forma fria e distante, que o irmão enlutado não a chame de Suze. Distância, aliás, é uma das tais linhas que Susan usou para tecer quem é. Ela não nutre amigos, relações no trabalho, namoro, nada. Tudo o que ela tem, além de uma rotina milimetricamente regrada, é um muro enorme ao seu redor, construído à base de grosserias e bastante amargura. Só muito depois de taxar Suze de escrota, é que mergulhamos em sua infância, adolescência e traumas e entendemos que os muros podem até servir para afastar, mas também para proteger. Se gato escaldado tem medo de água fria, pessoas extremamente magoadas podem ter medo de trocas e afeto. Excesso de controle, como a rotina cronometrada, não deixa de ser uma forma de se proteger do imprevisível. E é possível se proteger do que não se pode prever? Susan nos emociona mostrando que, talvez, não.

Além da premissa de mulheres protagonistas virando nossas anti-heroínas da forma mais macunaímica possível, abandonando a caixa da obediência ao deus-dará e quebrando todos os costumes que nos tornam mulheres “dignas e aceitáveis”, essas tramas nos colocam diante de uma das faces mais difíceis da psicologia: a dor humana.

Nós, mulheres, fomos educadas para sofrer sem reagir e a nos comportarmos com doce resiliência. Gestar os filhos no ventre e as dores no peito com pouco alarde e um sorriso no rosto. Vinicius de Moraes, em “Samba da Benção”, diz que alegria é a melhor coisa que existe, mas que uma mulher, para ser boa, precisa ter “alguma coisa de triste”. Em meio a tantas opressões, como não amar essas mulheres que se recusam a carregar seus traumas em silêncio ou com candura? Que manifestam suas frustrações aos quatro ventos? A desobediência, em diversas esferas, nos impulsionou para grandes conquistas. De Rosa Parks, que se negou a ceder seu assento a um homem branco no ônibus, a Kathrine Switzer, a primeira mulher a correr uma maratona em meio a empurrões e agressões dos outros competidores, toda conquista de minorias, seja feminina ou racial veio de uma transgressão.

Celebremos as mulheres desobedientes e difíceis. A elas, devemos muito.

 

*Iana Villela é feminista, influenciadora, sócia-fundadora e diretora de comunicação da Co.Brand, agência de comunicação digital com foco em negócios fundados e geridos por mulheres. Com forte atuação nas redes sociais, debate através de seus textos questões de gênero e saúde mental. 


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