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Tensão, mistério e afetos: Magda Szabó finalmente chega ao Brasil

13 / julho / 2021

Por Elisa Menezes*

Helen Mirren interpreta a misteriosa Emerenc em Atrás da Porta (2012), versão cinematográfica do livro dirigida por István Szabó (Foto: Divulgação)

Uma porta é a personagem central de um sonho, ou melhor, de um pesadelo. Nessa “visão recorrente”, uma mulher está de pé diante da entrada de casa e tenta em vão abrir a fechadura. Ela consegue ver através do vidro uma ambulância estacionada do lado de fora, sabe que precisa dar passagem aos socorristas, mas a fechadura não se abala, indiferente aos seus esforços. Seus gritos são mudos no sonho e sempre a despertam para a realidade. O limiar que a assombra está relacionado a uma morte, e esse desfecho, anunciado no início de A porta, será descortinado aos poucos, por uma escrita hipnótica, repleta de tensão e nebulosidade.

“A escrita não é uma pátria afável.”

Publicado na Hungria em 1987, A porta projetou internacionalmente a escritora Magda Szabó, considerada uma das vozes mais importantes da literatura europeia do século XX. Nascida em 1917 no ainda Império Austro-Húngaro, na cidade de Debrecen, Szabó teve a vida pessoal e profissional marcada pelas guerras e consequentes mudanças de regimes políticos na Hungria.

Durante o período de ocupação alemã e soviética, estudou latim e húngaro na universidade da sua cidade natal, trabalhou como professora e publicou dois livros de poesia. Em 1949, recebeu o prêmio Baumgarten, imediatamente revogado pelo governo, que a considerava uma inimiga do Partido Comunista. Assim como a narradora de A porta, Szabó ficou proibida de escrever por quase dez anos — em 1958, ela lançou seu primeiro romance — e foi laureada com o prêmio literário de maior prestígio do país, o Kossuth, em 1978.

“Fui eu que matei Emerenc. Eu queria salvá-la, e não matá-la, mas não faz a menor diferença.”

Apesar da morte anunciada e da atmosfera permanente de suspense, A porta não é um livro de crime, mas sim uma história sobre a complexidade dos afetos. Em uma pequena cidade húngara, nos anos 1950, uma escritora decide contratar uma empregada para poder, assim, se dedicar plenamente ao trabalho, sem perder tempo com tarefas domésticas. Emerenc, uma senhora forte, de idade desconhecida, que também atua como zeladora na mesma rua, é recomendada por uma amiga. Contudo, em seu primeiro encontro fica evidente que não se trata de uma serviçal qualquer: a velha é quem dá as cartas e decide para quem trabalha, com qual periodicidade e por qual remuneração. Afinal, ela “não lava a roupa suja de qualquer um”.

“Toda relação é uma possibilidade de agressão.”

A transparência que a patroa tanto deseja, sua necessidade de descobrir os segredos da empregada, o que ela esconde atrás de sua porta, passam a ser também a busca do leitor. Contudo, à medida que nos aproximamos dessa revelação, somos contagiados pelo sentimento de culpa da escritora e questionamos nossas próprias relações — e as exigências que fazemos às pessoas ao nosso redor. Os embates — e os laços — entre as duas mulheres nos levam a refletir sobre as relações de poder na sociedade e nos relacionamentos.

“Emerenc era a única habitante de seu reino de uma pessoa só.”

Emerenc é desses personagens inesquecíveis. A determinação e a dedicação sobre-humana ao trabalho e aos arruinados (pobres, doentes, perseguidos) fazem parte de uma ética própria e inegociável, que em certa medida a distancia dos demais e a aproxima de forças da natureza — como as nevascas que ela combate arduamente com sua vassoura de folhas. Não à toa as escritoras (autora e narradora) recorrem frequentemente à mitologia, à literatura clássica e à filosofia para descrever essa mulher “mais soberana que o Papa” e “tão forte que parecia um ser mitológico”.

“Afeto é um sentimento ilógico, mortal, imprevisível.”

Ao longo de vinte anos, as duas mulheres vão tecendo uma relação ambígua, ora fraternal, ora maternal, quase sempre conflituosa. A impossibilidade de comunicação entre patroa e empregada e as diferentes expectativas e visões que cada uma delas tem em relação à amizade permeiam toda a história. Enquanto a narradora “só sabe dizer as coisas por escrito”, é religiosa e faz parte da elite intelectual, Emerenc despreza a educação, a política, a Igreja e só acredita no trabalho braçal e na sabedoria dos animais. Sua história de vida, atravessada por mortes, privações, guerras e perseguições, confunde-se com a história da própria Hungria.

Magda Szabó morreu aos 90 anos, em 2007, deixando uma obra extensa com mais de sessenta títulos, entre ficção para adultos e jovens, poesia, peças teatrais e roteiros para o cinema. Felizmente, alguns de seus romances conseguiram cruzar as fronteiras geográficas e idiomáticas. A tradução para o inglês de A porta, em 1995, deu início ao reconhecimento internacional, e foi seguida por uma série de premiações na França e na Inglaterra. Em 2015, a reedição do romance nos Estados Unidos figurou na lista de 10 melhores livros do The New York Times e contribuiu para renovar o interesse pela obra da autora. Atualmente, Szabó está publicada em 42 países e mais de 30 idiomas.

 

*Elisa Menezes é jornalista, editora e tradutora.

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Comentários

Uma resposta para “Tensão, mistério e afetos: Magda Szabó finalmente chega ao Brasil

  1. Intrínseca, estamos quase em agosto. Cadê o sétimo livro de A Roda do Tempo?

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