Pedro Gabriel

[SEU ANTÔNIO, O BIRDMAN TUPINIQUIM]

29 / setembro / 2015

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Não, prezado leitor, não é nenhuma resenha sobre o premiadíssimo filme Birdman. Não há spoiler nas palavras que virão. É um texto sobre um homem simples que não virou super-herói, muito menos conheceu a glória das estrelas de cinema. Seu brilho está no anonimato. Ali, na garagem do edifício Grace, numa das ruas que cortam o charmoso bairro de Moema, seu Antônio brilha todos os dias, no mesmo horário. Os olhos atentos dos faróis dos carros enfileirados iluminam o palco improvisado. O Fiat Uno parece ser o mais animado dessa plateia motorizada. Dizem os mais antigos moradores que nem o pneu de uma Ferrari teria capacidade de cantar mais afinado do que aquele senhor. Todo dia, logo cedo, ele começa o show. Gratuito. Tem uma alma nobre, não precisa de dinheiro. De noite, responde carinhosamente por seu Antônio, o porteiro-faz-tudo do prédio. De dia, volta à realidade e ganha a fama como o Senhor-Homem-Pássaro da alameda dos Tupiniquins.

Fato é que seu Antônio nasceu muito antes de Riggan Thomson ou de seu intérprete, Michael Keaton. Até os quarenta anos não tinha vocação para soltar a voz. Não tenho dados concretos sobre a data exata do nascimento de sua genialidade sonora, mas é talento nato. Não é algo que se aprenda nas aulas de canto nem em algum workshop promovido pelo reino das aves. É algo que brota do nada. Quando ouvimos, já estamos hipnotizados. Seu Antônio tem um poder que todos gostariam de ter. Talvez o único argumento que o faça entrar algum dia na lista dos grandes heróis da cinematografia seja seu superpoder: o assobio. (Ou seria assovio? Deixo essa dúvida com meu editor). Falo aqui de um herói do cotidiano, um ícone do dia a dia, um gênio sem holofotes, um homem que cantarola suas fraquezas a plenos pulmões. Eis aqui, senhoras e senhores, um pacato cidadão que faz biquinho — será que, além de tudo, também fala francês? — e solta uma encantadora melodia que invade os dez andares do prédio, os quarenta apartamentos, os cento e vinte e três moradores, os duzentos e quarenta e seis ouvidos. Até o síndico seria capaz de derramar uma lágrima e interromper seu espírito ranzinza para pedir um autógrafo ao nosso birdman.

Seu Antônio é um cara (pássaro?) realizado. Recusou um monte de bicos, desculpe o trocadilho, que poderiam mudar sua vida radicalmente. Disse não ao ser convidado para ser o compositor exclusivo da trilha sonora de um jingle fofo de uma marca de celular; negou os pedidos incessantes da equipe de marketing do Metrô Rio para regravar o insuportável canto dos pássaros de algumas estações (era sua chance de brilhar em outro estado, mas ele é feliz com a fiel plateia do edifício Grace); por fim, cagou e voou para o interesse de uma das maiores gravadoras da América Latina — a promessa era lançar um disco que, segundo os especialistas do mercado, venderia mais do que qualquer álbum do Roberto Carlos: Seu Antônio & As Penettes de Ouro. Uma coisa é inegável: seu Antônio não se ilude facilmente e mantém sempre as patas no chão.

Todos os hits dos anos 1980, os maiores sucessos da bossa nova, os grandes êxitos do rockabilly, de Mozart a Mc Melody — tudo, tudo, tudo passa pela traqueia desse nosso homem-pássaro. A única explicação humana para esse fenômeno é que ele tenha engolido uma jukebox quando ainda era passarinho. Tom Jobim ficaria espantado com tamanha afinação da mais nova espécie de pássaro da fauna brasileira. Quantas calopsitas ele levou para o ninho com esse canto sedutor? “Sexual Healing” é pinto perto do talento bucal do nosso Marvin Gaye alado. Mas, apesar de toda a possibilidade de fama, ele prefere brilhar sozinho, sem julgamentos. E, quer saber, ele está certo: algumas coisas ficam mais bonitas quando permanecem intocadas.

 

Encerro meu texto por aqui, querido leitor. Lá embaixo, na garagem, seu Antônio começou a assobiar. (Ou assoviar? Espero que meu editor tenha se decidido).

Comentários

6 Respostas para “[SEU ANTÔNIO, O BIRDMAN TUPINIQUIM]

  1. Confesso que vim atraída pelo título, porque amo Birdman e adoro esse adjetivo, tupiniquim. Mas o texto me surpreendeu, e o final foi sensacional! Bem Fernando Sabino. Adoro a coluna 😉 beijo!

  2. Seu Antônio, deu até vontade de ouvir- lo , assobiar (o t9 do celular sempre ajuda)?

  3. Sempre que leio seus textos consigo me imaginar lá vivenciando tudo o que é falado durante a crónica!!
    #AmoSeusTextos

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