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Os lugares escuros de Gillian Flynn ou Não apague a luz

25 / junho / 2015

Por Bruno Capelas*

gillian

Quando Libby Day tinha sete anos, um massacre arrasou sua família. Com requintes de crueldade e toques de satanismo, sua mãe, Patty, e as duas irmãs mais novas, Debby e Michelle, foram assassinadas. O irmão mais velho da garota, Benjamin Day, foi acusado pelo crime. Única sobrevivente daquela noite de 1985 além dele, Libby tinha tudo para se tornar uma menina (e mulher) indefesa, superprotegida pelo mundo. Mas ao conhecermos a protagonista de Lugares escuros, segundo romance de Gillian Flynn, nos deparamos com um cenário bem diferente.

Na abertura do livro (e também do filme homônimo, que estreou na última semana nos cinemas brasileiros), Libby tem mais de 30 anos, não trabalha nem demonstra propensão para qualquer profissão. Rebelde, vive às custas de um fundo de doações que recebeu após o crime parar nas páginas dos jornais. Mas seu tempo está acabando: depois de mais de duas décadas, seus recursos estão chegando ao fim e ela precisa arranjar dinheiro. É nesse ponto que a trama de Flynn — sempre cheia de reviravoltas — começa a se desenrolar. Em vez de procurar um emprego, Libby aceita se envolver (e até extorquir) com um grupo de aficionados por crimes que quer entender melhor o passado de sua família.

CAPA_LugaresEscuros_MAIN (2)Mesmo antes dos assassinatos a família Day já era protagonista de uma grande tragédia. É o que Gillian Flynn deixa claro ao estruturar o romance, dividindo os capítulos entre o presente de Libby Day e o ponto de vista da mãe e do irmão nos momentos que antecederam o crime. Com obsessão pelos detalhes, a autora conta sobre a infância pobre de Libby, seu pai ausente e explorador e as brigas entre a mãe e o irmão mais velho da garota, além da devoção do rapaz por bandas de black metal e o namoro quase doentio com uma garota rica e mais velha. A força dos detalhes nas relações pessoais afirmam a todo momento que, às vezes, crimes hediondos se constroem não apenas com armas e sangue, mas também com palavras e falta de afeto. Mais do que isso, mostra como todos nós temos lugares escuros em nossa memória.

 

As marcas de Gillian Flynn

Em livro ou na telona, Lugares escuros tem tudo para agradar não só a quem já leu os outros livros da autora (Garota exemplar e Objetos cortantes) como também aos iniciantes em sua obra. Gillian Flynn — que começou a carreira como jornalista da Entertainment Weekly, uma das mais importantes revistas de cultura dos Estados Unidos — dispõe de três ingredientes interessantes: tramas carregadas de suspense, o tempo e as relações pessoais como condutores da narrativa e a presença de personagens femininas marcantes.

O suspense talvez seja a característica mais evidente da obra de Flynn: em Garota exemplar, o foco está no desaparecimento (sequestro?) de Amy Dunne, enquanto em Objetos cortantes, a trama gira em torno da jornalista Camille Preaker, que se vê obrigada a voltar a sua cidade natal para investigar um suposto serial killer. Mas, ao contrário do que costuma acontecer na maioria dos romances policiais, os crimes nem sempre são as questões mais terríveis. Em Garota exemplar, por exemplo, o casamento de Amy com o jornalista Nick Dunne é tão suspeito quanto o próprio sumiço da protagonista. Já Camille Preaker tem que lidar não só com a busca pelo assassino de duas garotas, mas também com o reencontro com sua mãe arrogante, exigente e ardilosa.

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Rosamund Pike e Ben Affleck em cena de “Garota exemplar”

Rosamund Pike e Ben Affleck em cena de “Garota exemplar”

Boa literatura de suspense escrita por mulheres não é novidade (um abraço, Agatha Christie!), mas é raro ver protagonistas (e antagonistas) mulheres tão bem-construídas como as de Gillian Flynn. Em seus três livros, podemos ver homens costumeiramente relegados ao segundo plano — é o que acontece com Benjamin Day em Lugares escuros e com o padrasto de Camille Preaker em Objetos cortantes.

Com perspicácia, a escritora não deixa suas personagens femininas se transformarem em donzelas em perigo ou em damas imersas em martírios pessoais. Cheias de ambivalências, elas são praticamente anti-heroínas — Camille Preaker gosta de retalhar o próprio corpo e Amy Dunne cultiva uma relação repleta de mentiras. Já Libby Day é cleptomaníaca — algo que, quando descrito pela própria personagem, ganha um tom trivial e até mesmo irônico.

Essas características, somadas aos trunfos de Flynn — como a ambientação de suas histórias em cidades aparentemente pacatas do interior dos Estados Unidos e a riqueza de descrições psicológicas —, fazem de seus romances ótimos objetos para adaptações cinematográficas. Foi o que aconteceu com Garota exemplar (dirigido por David Fincher, de Seven – Os sete crimes capitais e Clube da luta), e com o recente Lugares escuros, dirigido pelo francês Gilles Paquet-Brenner (de A chave de Sarah).

Charlize Theron em "Lugares escuros"

Charlize Theron em “Lugares escuros”

Enxugando a obsessão da autora pelos detalhes sem perder a profundidade da trama, o filme se mostra uma rara adaptação no cinema contemporâneo, buscando ser bastante fiel à obra em que é baseado. Junto ao ótimo trio de atuações — Christina Hendricks (Patty Day, a mãe de Libby), Nicholas Hoult (Lyle Wirth, do grupo de aficionados por crimes) e Charlize Theron (a Libby do presente) — Paquet-Brenner leva o romance de Flynn para outro lugar, fazendo-o ganhar ritmo e dramaticidade.

Para quem se acostumou a ver Christina Hendricks como a independente Joan Harris em Mad Men, a atriz surpreende ao aparecer como a frágil mãe da história. Nicholas Hoult, por sua vez, tem o tom perfeito para o pálido e esquisito Lyle, com direito a todas as manias que um fã de serial killers deve ter. Charlize Theron está ainda mais crua e propensa a ações intempestivas que em seu último filme, Mad Max, e foi a escolha certa para o papel de protagonista de Lugares escuros: uma mulher chocante, sempre à beira de um ataque de nervos. Na penumbra do quarto, ao ler antes de dormir, ou no escurinho do cinema, as histórias de Gillian Flynn têm tudo para deixá-lo ligado por dias. Só tome cuidado ao apagar a luz.

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Bruno Capelas é repórter do IGN Brasil, a versão brasileira do maior site de games do mundo. Formado em jornalismo pela USP, já foi repórter do portal iG e do Link, a editoria de tecnologia do jornal O Estado de S. Paulo. Além disso, edita o blog Pergunte ao Pop e colabora desde 2010 com o Scream & Yell, um dos principais veículos independentes de cultura pop do país.

Comentários

3 Respostas para “Os lugares escuros de Gillian Flynn ou Não apague a luz

  1. Olá,

    Gostaria de saber quando será lançado Lugares Escuros com a capa original?

  2. Oi, Thiago! Vamos publicar o livro com a capa original neste semestre. 😉

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