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Pátria: livro versus série

23 / outubro / 2020

Por Elisa Menezes*

Assim como o livro que lhe deu origem, a série Pátria percorre um período de 30 anos, mostrando as consequências das ações do grupo separatista ETA no dia a dia de pessoas comuns em um vilarejo do País Basco. As diversas faces desse conflito foram transpostas para a tela através de artifícios próprios da linguagem televisiva, mas com grande fidelidade à história original de Fernando Aramburu. Confira algumas semelhanças e diferenças entre as duas obras:

 

1. O roteirista e criador da série, Aitor Gabilondo, manteve a estrutura narrativa não linear do livro, com idas e vindas no tempo. Cada episódio é composto por cenas em épocas distintas (dos anos 1980 até 2011), mostrando a amizade e o rompimento dos nove personagens das duas famílias protagonistas.

 

2. Assim como no livro, os personagens da série se comunicam em castelhano, utilizando algumas expressões e palavras em euskera — como aita (pai) e agur (adeus). A edição brasileira, publicada pela Intrínseca, conta com um glossário com mais de 70 verbetes no idioma basco. “Por razões comerciais, não foi possível fazer todas as cenas em basco. Além disso, o livro foi escrito em espanhol. Em nenhum momento quis que alguns personagens falassem em basco e outros não. Não queria associar uma língua tão maravilhosa, bonita e de enorme valor cultural a determinado grupo e não a outro. Essa dinâmica é falsa e equivocada e eu nunca faria nada para estigmatizar o euskera”, afirma Gabilondo.

 

3. Além da não linearidade, outra característica marcante da obra de Aramburu é a narração polifônica: cada capítulo é contado sob o ponto de vista de um personagem, que, de maneira imprevisível, toma a voz do narrador e relata ele próprio sua história — às vezes uma interjeição, um breve comentário ou mesmo um parágrafo inteiro. É difícil imaginar a transposição desse sofisticado recurso literário para a linguagem televisiva. Contudo, Gabilondo procurou manter os diferentes pontos de vista na série. Cada episódio apresenta, majoritariamente, a perspectiva de um personagem. “Era importante que cada episódio tivesse uma ‘recompensa’, no sentido de começar e terminar de contar uma história”, explica o roteirista. O terceiro, por exemplo, é dedicado a Miren. Vemos como a raiva começa a nascer dentro dela e como a personagem se une à causa do filho de forma incondicional.

 

4. Os leitores de Pátria sabem: um dos grandes méritos de Fernando Aramburu é a capacidade de manter a tensão ao longo das mais de 500 páginas. À medida que avançamos, somos apresentados a novas peças nesse grande quebra-cabeças e compreendemos outras camadas da história e da psicologia de seus personagens. Pois essa mesma tensão também está à espera dos espectadores da série. Mesmo com alguns respiros — flashbacks de dias felizes, antes do rompimento das famílias, antes de Txato ser sentenciado como traidor pelo ETA —, as cenas nos fazem prender a respiração. Mérito das atuações, da direção de Félix Viscarret e Óscar Pedraza, do ritmo, da fotografia de Álvaro Gutiérrez e também da austera trilha sonora da série, a cargo de Fernando Velásquez.

 

5. Os silêncios também são centrais na história. Se no livro é possível entrar nos pensamentos dos personagens e descobrir os sentimentos e ideias que eles não ousam revelar, na série os olhares dizem muito sobre o que pensam e sentem. “Há muitas coisas que não são ditas e vão se acumulado. Muitos rancores soterrados, muito medo, muita dor, e acredito que isso vai calando muito nos personagens”, afirma Gabilondo. Como alguém que viveu o conflito basco, ele conhece bem essas pequenas histórias ocultadas ou apenas insinuadas no dia a dia. “Meu grande interesse era mostrar como duas famílias podem viver uma mesma situação tão de perto e de costas uma para a outra. Como elas vãos se separando aos poucos, agarradas às suas dores.”

 

6. Gabilondo optou por usar os mesmos atores nas diferentes fases, rejuvenescendo-os e envelhecendo-os de acordo com a época. “Com tantos saltos temporais, se ainda tivéssemos atores diferentes o público precisaria de GPS para ver a série”, afirmou, bem-humorado, durante um episódio do Podcast Pátria, criado pela HBO para expandir o universo da série. O roteirista disse ainda que “o que nos distingue é o olhar” e que também por isso quis manter os atores.

 

7. Coube à direção de arte e às equipes de caracterização e figurino retratar de forma convincente e autêntica a passagem do tempo nas locações e nos atores. Karmele Soler e Sergio Pèrez Berbel, responsáveis, respectivamente, pela maquiagem e pelo cabelo dos atores, trabalharam em dupla e fizeram inúmeros testes para chegar ao visual jovem e maduro de cada um dos nove personagens. Primeiro eles definiram o visual jovem e a partir dele estabeleceram as mudanças, levando em consideração também o temperamento de cada personagem. “Há muito de psicologia nesse trabalho”, afirma Karmele.

 

8. Envelhecer e rejuvenescer os atores não foi o único desafio: eles também precisaram criar transformações mais específicas. Para a filha de Miren, Arantxa, que sofre um AVC, fica com metade do rosto paralisado e passa a usar uma cadeira de rodas, eles fizeram uma prótese facial. Arantxa, aliás, é a personagem que mais usa perucas na série. Os longos cabelos da atriz Loreto Mauleón foram cortados bem curtos para o visual final e ela teve de usar perucas para as outras fases (longa e avermelhada, meio punk, para os anos 1980; o mesmo penteado, porém sem o vermelho, para o visual de mulher casada). No caso do jovem militante do ETA Joxe Mari, a dupla precisou levar em conta o tipo de degradação corporal que sofrem as pessoas que envelhecem em uma prisão. Assim, eles criaram um visual envelhecido, que traduz ainda as marcas das violências sofridas por ele.

 

9. Karmele e Sergio precisavam garantir ainda que todos os figurantes tivessem um aspecto legítimo da época retratada e estivessem adequados às cenas. “A figuração era muito importante. Nas manifestações, no enterro, essa gente tinha que ser de verdade e eu conheço essa gente. Na cena da manifestação, nós checamos fileira por fileira, um por um, para que parecesse verossímil. Isso dá muita credibilidade à série”, afirma a maquiadora, que é basca. Para Sergio, que não é do País Basco, a experiência de rodar as cenas ali foi muito enriquecedora. “Karmele me dizia: ‘As senhoras daqui não usam cabelo longo.’ E de repente eu estava lá, vivendo por cinco meses, e via que era verdade, que as mulheres mais velhas usam cabelo curto.” Em pouco tempo, o próprio Sergio já sabia reconhecer quem parecia ser local e quem aparentava ser de fora.

 

10. Assim como no livro, o vilarejo da série não é nomeado. Gabilondo queria que ele parecesse uma localidade basca comum, universal, com a qual todos pudessem se identificar, mas que não fosse facilmente identificável. Esse conceito norteou a escolha das diferentes locações que compuseram o vilarejo fictício. “Não há arquiteturas icônicas, não há uma percepção muito clara da paisagem. Buscamos o perfil urbano geral dos povoados do País Basco”, afirma o diretor de arte da série, Juan Pedro de Gaspar.

 

11. Se a equipe de caracterização precisou envelhecer e rejuvenescer os atores constantemente, a direção de arte enfrentou desafios semelhantes nas locações. A ponte onde Txato é assassinado sofreu intervenções e recebeu pilastras cenográficas; cabos de fibra ótica (que não existiam nos anos 1980) foram escondidos e uma antiga cabine telefônica — que tem papel significativo na trama — precisou ser garimpada e fixada na ponte. Essa mesma cabine foi reaproveitada em outra cena, que supostamente transcorre em local diferente. Para atender às demandas do enredo, a garagem de Txato precisava estar do outro lado da ponte, onde, na realidade, está o edifício da prefeitura, que permitiu que a equipe construísse uma garagem cenográfica na entrada do prédio.

 

12. As casas, assim como a cidade, dizem muito sobre os personagens. Graças ao trabalho da direção de arte, objetos e arquitetura mostram de forma sutil a diferença social entre as duas ex-amigas, Bittori e Miren. A primeira, casada com um empresário, tem uma vida mais confortável, sua casa tem vista para uma ponte (“A” ponte!) e está localizada em uma parte central e mais nobre do povoado. A segunda, mais humilde, casada com um operário, vive em uma área mais afastada e de sua janela enxerga uma fábrica. A casa de Miren foi totalmente construída em estúdio, em Madri, utilizando-se imagens de fundo rodadas no País Basco. Já a de Bittori foi em parte filmada em um apartamento no País Basco — que, apesar da localização ideal, era pequeno e só contemplou as cenas da sala —, que foi replicado em Madri, onde o demais cômodos foram construídos. “Era como uma máquina do tempo. Entrávamos lá e estávamos de volta ao País Basco. Foi um grande desafio para a continuidade”, afirma Juan Pedro de Gaspar.

Em entrevista ao podcast Pátria, Fernando Aramburu elogiou a adaptação televisiva de sua obra e destacou algumas diferenças entre as linguagens: “Achei os capítulos muito emocionantes pela veracidade do relato, pela força das imagens, pelas estupendas soluções narrativas, pelas boas interpretações. A força que as imagens têm as palavras não têm, mas para entender um romance é preciso decifrar um código. O leitor intervém de maneira muito ativa na hora de ler uma novela. Entendendo, lendo entrelinhas. Uma filmagem não deixa essas opções”, sentenciou o escritor. Aramburu revelou ainda que depois de assistir à série já não consegue imaginar seus personagens com outra cara que não seja a dos atores. E é justamente sobre personagens e atores que falaremos no próximo artigo especial. Não perca!


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