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Quem não gostaria de conversar com Martin Luther King Jr?

25 / agosto / 2020

Martin Luther King Jr. foi uma das vozes mais poderosas do século XX. O pastor e ativista deixou sua marca na história ao ser o porta-voz da luta pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos durante as décadas de 1950 e 1960, e até hoje é fonte de inspiração para jovens e adultos em todo o mundo. Quem não gostaria de ser como ele?

É partindo dessa premissa que Nic Stone escreve Cartas para Martin, seu livro de estreia. Através da voz (e das correspondências) do jovem Justyce McAllister, a autora levanta importantes questões sobre as complexidades de ser negro nos Estados Unidos. Em tempos de movimentos como o Black Lives Matter, o livro expõe a estrutura racista da sociedade e mostra que, quando se é negro, o sucesso profissional, acadêmico e financeiro não impede que o mundo hierarquize sua existência pela cor da pele.

A obra é uma excelente forma de conhecer alguns ideais defendidos por Luther King , além de apresentar aos jovens questionamentos importantes sobre racismo, injustiça social, privilégio e violência policial, ajudando-os a entender seu papel na luta antirracista.

A partir de hoje, 25 de agosto, Cartas para Martin está disponível nas livrarias e também em formato digital. Por coincidência (ou não), a primeira carta que Justyce escreve para Luther King foi escrita nesse mesmo dia.

Confira o texto completo:

MEU CARO MARTIN (OU “DR. KING”),

Antes de mais nada, quero que saiba que não é por desrespeito que me dirijo a você com certa intimidade, mas é que no primeiro ano pesquisei sobre sua história e seus ensinamentos para um trabalho, então, para mim, sinto como se você fosse de casa. Espero que não se incomode com isso.

Uma rápida apresentação: meu nome é Justyce McAllister, tenho dezessete anos, moro em Atlanta e estou no último ano da Escola Preparatória de Braselton, onde tenho bolsa de estudos integral. Sou o quarto colocado entre os oitenta e três alunos do meu ano, sou capitão da equipe de debate, fiz pontuações excelentes nos exames de admissão e, apesar de ter crescido numa área “ruim” da cidade (não muito longe de onde você morou), é muito provável que meu futuro inclua uma das melhores universidades do país, um diploma em Direito e uma carreira na administração pública.

Infelizmente, hoje de madrugada nada disso teve valor algum.

O que aconteceu, em resumo, foi que eu tentei fazer uma boa ação e acabei sendo atirado no chão e algemado. Minha ex-namorada é que estava doidona, mas, pelo visto, o grande perigo ali era eu, com meu casaco de capuz, a ponto de o policial que me abordou até ter chamado reforço.

Eu pensei que tudo fosse se resolver quando os pais da minha ex chegassem, mas o mais louco disso tudo é que os policiais não queriam me soltar por nada nesse mundo, não importava o que o sr. e a sra. Taylor dissessem. Quando o sr. Taylor avisou que ia ligar para a minha mãe, os caras deixaram muito claro que, como eu tenho dezessete anos, pela lei americana já sou considerado maior de idade em casos de infração legal — ou seja, não havia nada que a mamãezinha pudesse fazer por mim.

Ele acabou ligando para a mãe de uma amiga minha, a SJ. A sra. Friedman é advogada e teve que ir até a delegacia vomitar na cara deles um monte de termos legais para conseguir que eles tirassem minhas algemas. Já estava amanhecendo quando finalmente me liberaram.

Foram horas, Martin.

A sra. Friedman não falou muito enquanto me levava para o alojamento da escola, mas me fez prometer que eu ia passar na enfermaria para pegar compressas frias para botar nos meus pulsos inchados. Liguei para minha mãe e contei o que tinha acontecido. Ela disse que a primeira coisa que vai fazer amanhã é registrar uma ocorrência, mas duvido que dê em alguma coisa.

Sinceramente, não sei bem como deveria me sentir. Nunca achei que me veria numa situação dessas. Teve o caso de um garoto, Shemar Carson… negro, da minha idade… foi morto por um policial branco em Nevada, em junho. Não se sabem muitos detalhes, já que não houve testemunhas, mas tudo indica que o policial atirou num garoto que não estava armado. Quatro vezes. A história ficou ainda mais suspeita porque, de acordo com os médicos-legistas, houve um intervalo de duas horas entre a hora estimada do óbito e o momento em que o policial reportou o ocorrido.

Antes do Incidente (essa história de ontem), eu nunca tinha pensado muito sobre essas coisas. As informações que a gente encontra são conflitantes, então é difícil saber no que acreditar. A família e os amigos de Shemar dizem que ele era um bom garoto, que ia para a faculdade, que participava do grupo de jovens da igreja… mas o policial alega que o flagrou tentando roubar um carro. Houve confronto físico (diz ele), e aí, de acordo com os registros, Shemar tentou pegar a arma do policial, que então atirou no rapaz, em legítima defesa.

Sei lá. Eu vi umas fotos do Shemar Carson, e ele meio que tinha mesmo cara de bandido. Acho que pensei que nunca precisaria me preocupar com esse tipo de coisa, porque, comparado a ele, eu não pareço nada “ameaçador”, sabe? Não ando com a calça lá embaixo nem uso aquelas roupas largonas. Frequento uma boa escola, tenho objetivos de vida e “a cabeça no lugar”, como diz minha mãe.

Tudo bem que eu cresci numa área violenta, mas sei que sou uma pessoa boa, Martin. Sempre pensei que, se eu me esforçasse muito e fosse um cidadão exemplar, não passaria pelas coisas que os OUTROS negros passam, sabe? É difícil aceitar que eu estava enganado.

Agora, eu só consigo pensar o seguinte: “O que teria sido diferente se eu não fosse negro?” Até entendo que, de cara, o policial só podia confiar no que estava vendo (que realmente parecia meio suspeito), mas nunca tinham duvidado do meu caráter dessa forma.

A noite passada mudou algo em mim. Não é que eu vá sair por aí todo revoltado e fazendo mer… quer dizer, fazendo besteira, mas sei que não posso continuar fingindo que não tem nada errado. Pode até não haver mais bebedouros separados para as pessoas “de cor”, e racismo hoje em dia é crime, mas, se eu ainda posso ser forçado a sentar no chão de concreto com algemas apertando meus pulsos mesmo sem ter feito nada errado, é bem óbvio que temos um problema. Que a sociedade não é tão igualitária quanto as pessoas gostam de dizer.

Preciso ser mais atento, Martin. Começar a enxergar a realidade e escrever sobre essa questão. Entender o que posso fazer. É por isso que estou escrevendo para você. Você sofreu coisa muito pior que ficar algumas horas algemado, mas mesmo assim estava sempre pronto para o ataque. Na verdade, sempre pronto para a paz.

Quero tentar viver como você. Agir como você agiria. Quero ver aonde isso me leva.

Tenho que encerrar por aqui, porque meu pulso está doendo, mas obrigado por me escutar.

 

Um grande abraço,
Justyce McAllister


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Comentários

3 Respostas para “Quem não gostaria de conversar com Martin Luther King Jr?

  1. É glorioso saber que uma pessoa negra está fazendo a diferença na coisa que ela sabe fazer melhor. Obrigado por isso Nic.
    É triste ver tudo que está acontecendo, principalmente se você é um jovem negro como eu. É triste ver que os casos de violência contra pessoas negras no EUA não é diferente daqueles que acontecem aqui no Brasil. É triste ver que, por mais que lutamos, algumas coisas não mudam. Mas o mais triste é desacreditar na humanidade. Ver pessoas que se alegam “irmãos” e “irmãs” do povo fazendo m3rd4.
    É triste perder a vontade de viver por causa dessas coisas sabe? Decepcionante! Mas precisamos continuar acreditando, não é? Um dia tudo muda, né?

    Nossa, cada coisa que estamos vivendo né. Pandemia, racismo, machismo, fascismo etc. Tudo isso com tanta intensidade…
    Não me orgulho de falar mas a coisa mais louca que eu fiz nessa quarentena foi pedir para que Deus (sim, sou católico) tirasse minha vida. Parece psicopata desse jeito mas eu não sou, juro!! Como eu disse lá encima é triste ver você se desacreditando da humanidade mas enfim…
    Obrigado Intrínseca por publicar essa obra no Brasil, ela já está na lista. Obrigado Nic por fazer essa obra, espero que um dia possa te conhecer (bienal do livro, oi?). E obrigado a você que está lendo meu desabafamento. Você é incrível!!

    E
    P.s.: E sim, estou melhor. Não é necessário chamar as pessoas da assistência contra o suicídio pq eu não tenho essa coragem.

  2. O livro é sensacional e se faz muito necessário no momento em que vivemos.
    O fogo continuará queimando ?
    Espero que a Intrínseca traduza e edite a recém lançada continuação “Dear Justyce”

  3. Afro time é um tempo de empatia, de justiça mas acima de tudo de humanidade, e com isto acreditamos que Cartas para Martin é um livro que vai abrir horizontes, pontes e ajudar o mundo a ser mais humano e lembrar que estamos todos no mesmo barco, Doutor King pregava a paz e com certeza ela tem que ser a nossa bandeira contra a dor, a tristeza e o luto de nossa sociedade real. Wakanda forever Martin Luther King!

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