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Mas… você se dá bem com eles? Uma reflexão sobre a madrastidade

15 / agosto / 2022

  *Por Angelica Lino

madrasta

 

Eu trabalhava havia poucos meses na Intrínseca quando soube que o livro de abril do clube intrínsecos teria uma madrasta como protagonista. Automaticamente, pensei: ok, lá vem mais uma madrasta estereotipada, uma bruxa, uma mulher intragável que obriga os enteados a arar um campo de 67 hectares. Para minha surpresa, eu me deparei com a Hannah Hall, uma madrasta muito bem representada na ficção. Hannah tinha medos e dificuldades reais. Era gente como eu. Sentia as dores de ser mãe, embora não fosse uma. Sentia as dores de ser madrasta, embora não estivesse preparada para se tornar uma. Ela entendeu como é difícil e prazeroso amar alguém que não tem os seus olhos nem o seu cheiro. Em A última coisa que ele me falou, de Laura Dave, acompanhamos Hannah e sua enteada, Bailey, em uma busca por Owen. Pai dedicado e um marido atencioso e bem-humorado, Owen desaparece deixando para trás apenas um bilhete com a frase Proteja ela.

Num primeiro olhar, o sumiço de Owen parece totalmente injustificado. Pouco a pouco, no entanto, o desaparecimento ganha contornos policiais e apenas Hannah e Bailey  acreditam na inocência dele. Juntas, elas decidem seguir os rastros de Owen e viajam para Austin com o objetivo de montar um quebra-cabeça a partir das lembranças de infância de Bailey e de recordações recentes que ambas têm com ele. É bonito ver como a relação das duas vai se transformando ao longo da narrativa. Não é mais uma busca por um interesse em comum ou mera parceria. Cria-se um laço, uma família, e o que mais me emocionou foi ver como esse amor entre madrasta e enteada pode se transmutar, mesmo com as mil questões da “madrastidade”. 

Eu sou madrasta há quatro anos. Meus três (não se espante!) enteados eram bem pequenos quando conheci meu marido, pai deles. Os gêmeos tinham um ano e seis meses e não conseguiam falar “Angelica’’, o que me rendeu a nova identidade de “Jeca’’. A mais velha tinha quatro anos, e costumo dizer que foi ela que me tornou madrasta, porque criamos um elo imediato assim que aquela mãozinha cheia de colágeno e unhas mínimas encostou na minha mão trêmula. 

Esse primeiro contato assusta porque não há preparo, treino ou manual. Hannah ficou nervosa. Eu tive febre. Hannah tinha 38 anos. Eu, 22. Não há puerpério. A chegada das crianças à sua vida não é anunciada com duas linhas no teste de gravidez. Elas nascem para você a partir da frase “Eu tenho filhos’’ dita pelo  pai, provavelmente no segundo encontro. Eu me sentia mais apta a resolver a equação matemática mais difícil do mundo — dessas que até Einstein quebraria a cabeça — do que a ser madrasta.

Ma-dras-ta. Uma palavra tão malvista, carregada de mitos, subjugada até pelo dicionário de Oxford, que a define como Mulher má, incapaz de revelar gestos de ternura. Muitas mulheres resistem a serem chamadas assim e preferem termos carinhosos como “boadrasta’’, “mãedrasta’’. Penso que é justamente tirando o peso do termo, e não mudando o seu sentido, que vamos compreender cada vez mais nosso papel na vida de tantas crianças. Afinal, o prefixo ma tem origem no latim mater, que significa “mãe”, e não “maldade”. É a partir dessa aceitação que Hannah se sente mais próxima de sua enteada em um dos trechos mais significativos do livro:

Agradeça à sua madrasta retruca Elenor. 

E é quando uma coisa incrível acontece. A Bailey não se encolhe quando Elenor se refere a mim dessa forma. Ela não me agradece. Nem olha pra mim. Mas não se encolhe, o que parece um pouco com um agradecimento.

As madrastas falam o mesmo idioma. Dificilmente passam incólumes da frase:  “Mas… você se dá bem com eles?’’ quando revelam que têm enteados. Como posso não me dar bem com crianças que moram comigo desde que se entendem por gente? Como posso não me dar bem com crianças que me fazem acordar às 3 da manhã pra dar 25 gotas de Novalgina quando estão com febre? Como posso não me dar bem com crianças que me mostram, todos os dias, que família é algo que se expande? Solto uma risada meio triste quando penso no absurdo que seria essa pergunta direcionada para uma mãe biológica: “Você se dá bem com eles?” 

Talvez seja por isso que o livro acessou lugares bem profundos em mim. Ele conectou minha realidade com a ficção. E não a ficção dos contos de fadas. Sei que definir o papel da literatura é tão custoso quanto definir o que é o amor. E a definição que mais chegou perto, para mim, foi a do escritor Joseph Brodsky ao dizer que “a literatura não serve para salvar o mundo, mas é um ‘extraordinário acelerador da consciência’”. Então, ver uma madrasta nesse mesmo lugar em que eu me encontro, que é a própria literatura, foi um espelho. E torço para que essa consciência se expanda.

Alguns momentos servem para cristalizar uma relação, como uma fala que ecoa e que nos coloca em nosso lugar no mundo. O meu talvez tenha sido quando ouvi dos meus enteados que eles não se lembravam mais da vida deles sem mim. Esse momento para Hannah talvez esteja na revelação da última página do livro. Os laços são mais fortes que o sangue, e ser madrasta, entre outras coisas, é amar alguém que não saiu do seu ventre, mas que cria um vínculo tão poderoso com você a partir de um simples gesto, como dar as mãos.

Angelica Lino trabalha no Marketing da Intrínseca, é especialista em Literatura e hoje fala com muito orgulho que é madrasta de três crianças: Alice, Martin e Antônio.

 


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