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Forward: a ficção científica é para todo mundo

18 / março / 2022

Por Cláudia Fusco*

À primeira vista, a ficção científica pode parecer um tanto antipática, especialmente quando falamos de livros. Ao contrário de sua versão audiovisual, repleta de obras amadas e referenciadas, a ficção científica literária é muitas vezes entendida como um nicho, um espaço para poucos, com obras pontuais que escapam desse cerco fechado e se tornam conhecidas e parte fundamental do cânone literário.

No entanto, para cada 1984 e A mão esquerda da escuridão que se tornam célebres, há uma infinidade de tesouros escondidos só esperando para serem descobertos. São obras e autores que tornam a ficção científica acessível e apaixonante. Escritoras e escritores que, como diz Ursula K. Le Guin, são “realistas de uma realidade maior”, capazes de extrapolar as fronteiras do que chamamos de futuro.

Porém, como em toda boa história de aventura, é preciso um plano para chegar ao tesouro. É importante conhecer o terreno, planejar o ataque, sem correr o risco de encontrar um dragão ou uma pedra gigante no meio do caminho. Para o leitor que desconfia que a ficção científica possa ser interessante e acolhedora, um encontro não muito planejado pode desmotivar novos contatos com essas histórias. Então, como treinamos o olhar para encontrar e reconhecer a ficção científica que combina com nosso gosto?

 

Encontre seus interesses narrativos

O primeiro passo é entender alguns estilos da ficção científica. Hoje, é quase impossível mapear todos os subgêneros da literatura fantástica, mas narrativas próximas costumam caminhar juntas. O leitor de distopia, por exemplo, sabe que provavelmente vai gostar de histórias com regimes totalitários e opressores. Quem ama narrativas imersivas em mundos complexos pode se nortear a partir de Jogador Número Um para ler mais histórias do tipo. Quem ama ficção científica que dá um nó na cabeça vai encontrar um lar nas obras de Blake Crouch e Ted Chiang.

Além disso, mais do que nunca, a literatura fantástica é uma bandeira, um espaço seguro para vozes plurais. A partir dos anos 1960, ela se tornou palco para debates sobre gênero e sexualidade, cujo impacto sentimos até hoje. Movimentos como o afrofuturismo e o sertãopunk, cuja premissa rodeia questões de identidade e vivências específicas, floresceram a partir da extrapolação dos limites narrativos. Não há voz que não possa ser acolhida pela fantasia – se não pudermos imaginar um mundo melhor, como vamos construí-lo?

Expiração é a segunda coletânea de contos de Ted Chiang

Muita gente começa a ler ficção científica justamente por esse motivo. Pensar sobre o futuro é uma das funções do autor de literatura extrapolativa, e muitas inovações parecem deixar rastro nesse tipo de literatura. É bastante comum haver certa expectativa sobre o que a ficção científica “acertou” e “errou” em relação ao futuro, quando podemos dizer que a literatura e o cinema de gênero de cada época ativamente influenciaram esse futuro.

É possível fazer uma ponte, por exemplo, entre a geração que nos anos 1920 e 1930 leu ficção científica pulp  e a geração de cientistas responsáveis por levar a humanidade à Lua na década de 1960. Embora seja tentador avaliar a qualidade de uma história a partir do quanto ela é precisa na sua definição de futuro, o que realmente torna uma história de ficção científica fresca e atual é seu olhar crítico para o mundo de hoje.

Não custa lembrar que 1984, por exemplo, foi escrito como um alerta aos riscos que o pensamento democrático corria no final da década de 1940; hoje, nos vemos às voltas com indagações e angústias parecidas, mesmo que o contexto seja outro. Quando a pandemia de Covid-19 se alastrou pelo mundo em 2020, a literatura distópica e apocalíptica foi enxergada como uma referência importante; o governo dos Estados Unidos chegou a consultar um escritor de narrativas sobre apocalipse zumbi para aprender mais sobre métodos de contenção de vírus. Ainda que, à primeira vista, uma narrativa pessimista não pareça a melhor escolha para tempos difíceis, ler aquilo que é análogo à vivência contemporânea pode render bons frutos para reflexão. Ler seu próprio tempo é um bom critério para conhecer mais histórias aparentemente futuristas.

 

Histórias curtas, envolvimentos longos

Outra boa forma de se aproximar da literatura de gênero é por meio de contos. Ray Bradbury, um dos pais da ficção científica do século XX, era defensor da narrativa curta. Para quem escreve, é uma chance de explorar diversos territórios e testar diálogos, interações e personagens. Para quem lê, é o terreno certo para conhecer estilos de autores sem o compromisso de um romance, mas sem dever nada em termos de investimento emocional na trama. Bons contos, afinal, são tesouros portáteis.

Forward, que já está disponível nas prateleiras das livrarias de todo o Brasil, não é apenas uma coletânea de tesouros escritos por autores peso-pesados desta geração. A obra também atende a todos os critérios de escolha de uma boa história de ficção científica: são histórias de nicho, mas com temas universais; foram escritas por vozes plurais, baseadas no mundo de hoje, mas extrapolam as barreiras do que consideramos possível.

Forward reúne contos de seis grandes autores contemporâneos

A coletânea promove o encontro entre alguns dos melhores autores da contemporaneidade, provocados por Blake Crouch a pensar o futuro e contar histórias profundas e envolventes em poucas páginas. Velhos conhecidos da ficção científica, como N. K. Jemisin, Veronica Roth e Andy Weir, se encontram com estreantes no gênero mas veteranos na palavra escrita, como Amor Towles.

Da mesma forma que abraçam temas e tropos do universo literário, esses autores também fazem o movimento contrário, colocando muito de si na trama. “Pele de emergência”, por exemplo, é uma história sobre transformação ambiental, mas também sobre racismo, desequilíbrio entre direitos e permanência da humanidade. É uma narrativa extremamente contemporânea, costurada de forma magistral por N. K. Jemisin para ter tons futuristas. O mesmo pode ser dito dos outros contos da obra: do amor ao livre-arbítrio, tudo pode ser tema de ficção científica.

Forward é um excelente exemplo de que a ficção científica é para todo mundo: basta começar com um guia que nos ajude a viajar por universos inóspitos e realidades simuladas, conhecendo robôs traiçoeiros e realidades alternativas, mas sempre voltando para casa transformados por essa experiência. Boa viagem e aproveite a jornada!

 

* Cláudia Fusco é mestre em Estudos de Ficção Científica pela Universidade de Liverpool, na Inglaterra. Dá cursos e palestras sobre gênero, cultura pop, fantasia e ficção científica, e tem passagem por espaços como USP, Casa do Saber, Bienal do Livro, MIS-SP, Sesc, entre outros. Atualmente, é professora de pós-graduação da ESPM-SP (Entretenimento Fantástico) e do Instituto Vera Cruz (Narrativas Fantásticas), além de escritora e roteirista.


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