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Yung Pueblo: autoajuda para o século XXI

26 / novembro / 2021

*Por Gabriel Trigueiro

A autoajuda quase sempre experimentou um sucesso popular e comercial considerável, embora seu prestígio intelectual costume ser inversamente proporcional ao sucesso. A primeira geração de modernistas não só considerava o gênero vulgar, como também o tornou alvo de piadas, satirizando o excesso de didatismo e a instrumentalidade da literatura de autoajuda. É o caso de How Should One Read a Book? [Como se lê um livro?], de Virginia Woolf, e ABC of Reading [O ABC da escrita], de Ezra Pound, por exemplo.

Por isso, foi grande a surpresa quando a biblioteca pessoal do escritor norte-americano David Foster Wallace, um dos maiores do século XX, foi doada à Universidade do Texas e nela foi encontrada uma boa quantidade de livros de autoajuda. Em todos eles, inúmeras anotações nas margens, rabiscos, setinhas, referências e paráfrases, quase como se o autor estivesse em diálogo constante com as questões e os problemas apresentados nas obras.

Nada estranho para alguém que sempre se ocupou daquilo que é humano e do poder da literatura de nos tornar menos sós e, quem sabe, até mesmo pessoas melhores. Mesmo assim, o acervo surpreendeu críticos e especialistas conceituados, principalmente os tidos como os guardiões do bom gosto, que sempre torceram o nariz para a autoajuda como gênero.

Mas o engraçado é que, quando você lê Graça infinita, por exemplo, a obra-prima de Wallace, um romance pós-moderno publicado em 1996 e um catatau de mais de mil páginas, percebe que, além dos recursos de linguagem e das demais invencionices formais e de estilo, a maior preocupação do autor é tão simples quanto a de qualquer autor de autoajuda: a de criar uma conexão profunda com o leitor e um espaço de autorreflexão e de crescimento humano. Isso, é claro, não qualifica Wallace como um autor de autoajuda, mas certamente como alguém influenciado pelo gênero.

A autoajuda e a “compaixão estrutural”

A origem moderna da autoajuda, como gênero literário, data das sociedades socialistas e anarquistas britânicas do século XIX. Manifestos como Self-Help by the People [Autoajuda pelo povo], de George Jacob Holyoake, publicado em 1857, sugeriam que os trabalhadores aprendessem ofícios variados a fim de que pudessem ser úteis à sua comunidade. What Is to Be Done? [O que deve ser feito?], publicado na Rússia em 1863 por Nikolai Chernyshevsky, discutia estratégias políticas e também abarcava dicas que iam desde como lidar com relações românticas até como criar e liderar uma cooperativa de costura.

Com o passar do tempo, foi ocorrendo um aburguesamento do gênero, cujo marco histórico normalmente é datado a partir da publicação de Self-Help [Autoajuda], em 1859, por Samuel Smiles, um jornalista escocês liberal-reformista. Essa guinada liberal acabou condicionando o tom de parte das publicações subsequentes do gênero, traduzido no foco excessivo no progresso individual em detrimento de quaisquer considerações mais coletivas e sociológicas.

Os estudiosos organizam o desenvolvimento da autoajuda nos Estados Unidos em três grandes fases: uma focada na criatividade e no esforço individual, situada em até meados do século XX; depois, o pós-Segunda Guerra, um momento em que essa literatura se volta para a ideia da busca de “lazer e conforto” pelo indivíduo após o conflito mundial; e, por fim, a fase da abertura à espiritualidade, no final do século. Repare que o conteúdo e mesmo a forma desse gênero literário acompanha o contexto social e cultural macro.

O movimento em voga, então, é a ideia da busca da felicidade e da paz interior a partir de um caminho trilhado e pavimentado por autoconsciência, generosidade, compaixão e coragem. É justamente nesse terceiro paradigma que se encaixa o jovem Diego Perez, que assina com o pseudônimo de Yung Pueblo e é um dos expoentes da literatura de autoajuda contemporânea.

Autoajuda: conexão e humanidade

Pueblo nasceu no Equador e migrou, ainda criança, para os Estados Unidos. Já adulto descobriu a meditação Vipassana e começou a escrever, em livros e no Instagram, poemas, pequenos ensaios, frases e aconselhamentos de autoconhecimento para o seu cada vez maior público leitor. Em determinada passagem de seu livro, afirma: “Novos acontecimentos normalmente não são percebidos com total clareza, pois sua semelhança com situações do passado engatilha antigas reações emocionais e elas rapidamente nublam a capacidade da mente de observar com objetividade o que acontece. Vemos o hoje e, ao mesmo tempo, sentimos todos os ontens.”

Um ponto sempre reiterado pelo autor é essa ascendência do passado sobre o presente, além da urgência em abraçarmos uma postura de vida pautada pela autoconsciência. Nas palavras do autor: “Da próxima vez que se sentir aflito por recair em antigos padrões, lembre-se de que a simples consciência de estar repetindo o passado é sinal de progresso”. Também há uma atenção especial dirigida aos nossos relacionamentos e à natureza das configurações de afeto a que nos entregamos. Por exemplo, quando ele pontua que “Lealdade cega não nutre ninguém. Apoiar a quem se ama na ignorância, ou pior, tolerar continuamente o mal que lhe causa, é um ato de traição a si próprio”.

É interessante, também, notar que Pueblo recupera e se filia a uma tradição da autoajuda que é politicamente radical em sua origem: segundo ele, “cabe a nós tornar estrutural a compaixão”. Como Pueblo mesmo argumenta, e aqui de modo abertamente político, “subir o padrão de forma a não mais haver gente sofrendo em nível material não é uma impossibilidade; é só questão de disposição. Temos, coletivamente, a riqueza e o conhecimento para fazê-lo. O que nos falta é um senso maior de compaixão incondicional”.

Você pode classificar Clareza & conexão, o livro mais recente de Pueblo, como “autoajuda para o século XXI” ou até como um “Minutos de Sabedoria hipster”. Mas o fato de sua obra ter ganhado visibilidade a partir de posts em uma rede social como o Instagram, a qual amplifica os nossos traços individuais e coletivos de narcisismo e individualismo, é mais um indicador da capacidade de conexão humana, compaixão e coragem geradas por sua escrita. E isso talvez aponte para algo de positivo e de generoso sobre a capacidade humana de lidar com a apatia e o cinismo nosso de cada dia.

 

*Gabriel Trigueiro é doutor em História Comparada pela UFRJ

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