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O fantástico mundo de Mariana Enriquez

5 / agosto / 2021

Por Elisa Menezes*

(Mariana Enriquez © Nora Lezano, 2019)

Comparado a Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, e a 2666, de Roberto Bolaño; vencedor do Premio Herralde de Novela (2019), uma das mais importantes premiações da literatura em língua espanhola do mundo. Essas são algumas das credenciais de Nossa parte de noite, romance monumental de Mariana Enriquez. E aqui “monumental” não se refere apenas ao número de páginas do livro (quase 600 na edição brasileira), mas também ao sentido figurado oferecido pelo dicionário: “que mostra admirável singularidade; magnífico, maravilhoso”.

Narrado por diferentes vozes e de forma não linear, Nossa parte de noite conta a história da Ordem, uma seita formada por ricos que buscam a vida eterna e veneram a Escuridão, entidade que devora corpos e se manifesta através de médiuns. O mais poderoso deles, Juan Peterson, tenta evitar que o filho Gaspar repita seu destino —– ou o da mãe, morta em circunstâncias suspeitas. Como pano de fundo, os psicodélicos anos 1960 de Londres, a ditadura militar argentina de 1970 e as cicatrizes e traumas causados por ela nas décadas e gerações seguintes.

Celebrada por seus relatos curtos — o reconhecimento internacional veio após a publicação na Espanha, em 2017, do seu segundo livro de contos, As coisas que perdemos no fogo —, Mariana Enriquez desejava escrever um romance caudaloso, em que pudesse desenvolver as histórias de seus personagens e incluir todas as suas “obsessões”. Nossa parte de noite engloba, assim, referências eruditas e populares, misticismo, sexualidade não normativa, poesia inglesa, rock, ocultismo, terror, música pop, cinema, drogas, adolescência, anos de chumbo, recessão econômica. Temas que povoam a obra da autora desde seu primeiro livro, Bajar es lo peor, publicado em 1995, quando ela tinha 22 anos, e que lhe rendeu à época o epíteto de “escritora mais jovem da Argentina”.

Hoje, Enriquez é apontada como uma das vozes mais brilhantes da literatura contemporânea da América Latina, integrando o que muitos consideram um novo “boom latino-americano” — desta vez feminino. Deixando de lado o termo “boom” — por ser reducionista e centrado no passado —, e sem perder de vista as especificidades de cada autora, é notório que a geração de mulheres nascidas nos anos 1970 vem alcançando maior visibilidade e reconhecimento no mercado literário. É também possível enxergar semelhanças nas temáticas escolhidas por algumas delas. O terror, o insólito e o fantástico — misturados à violência urbana e aos feminicídios — aparecem em obras de escritoras como as argentinas Samanta Schweblin e Dolores Reyes, a colombiana Pilar Quintana, a equatoriana Maria Fernanda Ampuero e a mexicana Fernanda Melchor.

Quando indagada sobre o assunto, Mariana Enriquez observa que talvez o que as une — além das memórias recentes da ditadura em seus países — seja uma formação sentimental comum. Afinal, essa geração cresceu durante a explosão do cinema de terror do final dos anos 1970 até o início do 1990 e consumiu Steven Spielberg, Twin Peaks (a série fetiche de TV de David Lynch), Stephen King, Neil Gaiman, rock e rap.

 

Um romance, várias portas de entradas

Gaiman, King, McCarthy, Quiroga e Spielberg são algumas das referências da autora

Apaixonada pelo horror e pelo fantástico, Mariana se propôs a escrever um romance de gênero que alcançasse não apenas os leitores de terror. Assim como os médiuns de Nossa parte de noite, a escritora oferece ao público diversas portas de entrada para o seu mundo. Quem escolher a porta do terror, o encontrará em todas as suas variantes (gótico, sensual, psicológico, violento, trash, suspense…) e com DNA latino-americano. Quem preferir a dos relacionamentos, mergulhará em questões como paternidade, herança, amadurecimento e amizade.

A entrada pode estar nos misticismos e religiosidades que povoam o romance, dos santos pagãos como São Morte às religiões de matriz africana. Ou nas questões existenciais e universais, como amor e morte. Outra leitura possível é a da construção e perpetuação do poder pelas elites sociais e econômicas globais — os ricos e poderosos membros da seita são capazes das piores atrocidades para manter a ordem. Há ainda a porta histórica, o retrato de um país — e também de um continente — assombrado pelo regime ditatorial e que precisa lidar com seus fantasmas reais, como torturas, desaparecimentos, sequestros e assassinatos.

Esse universo de horrores sobrenaturais e mundanos é composto por seis partes narradas de diferentes maneiras e com características próprias. Na primeira, acompanhamos a road trip de Juan e Gaspar, de Buenos Aires até as Cataratas do Iguaçu, com ecos de Lovecraft, Cormac McCarthy e Horacio Quiroga. A segunda é dedicada aos fluxos de pensamento do médico responsável por descobrir a mediunidade de Juan. A seção seguinte tem ares de Stephen King e Spielberg e pode ser lida como o início de um romance de formação, em que acompanhamos o amadurecimento de Gaspar e seus amigos. O desfecho desse “romance de formação” está na última parte do livro, que alcança os anos 1990, com a militância juvenil, as mortes por aids e a recessão econômica. A quarta parte é uma espécie de carta narrada em primeira pessoa pela personagem que já está morta em todas as outras: Rosario, a mãe de Gaspar. Na penúltima parte, Mariana nos surpreende com uma falsa crônica jornalística — tão verossímil que sentimos o impulso de pesquisar se aqueles acontecimentos são reais.

 

O “realismo horror” seduz o mundo

Nascida em 1973 em Lanús, subúrbio a quinze quilômetros de Buenos Aires, Mariana Enriquez cursou comunicação social e é também professora, jornalista e subeditora do jornal argentino Página/12. Além de contos e romances, publicou crônicas sobre suas visitas a cemitérios (um hobby), um livro juvenil ilustrado e a novela Este é o mar, em que mistura mitologia grega, ídolos do rock e seres sobrenaturais.

Seu “realismo horror” — expressão usada por ela mesma — vem conquistando cada vez mais fãs e prêmios. Este ano, a tradução para o inglês de seu livro de contos Os perigos de fumar na cama foi finalista do prestigioso Man Booker Prize. Recentemente, ela anunciou que sua obra chegará aos cinemas: o conto que dá nome à coletânea As coisas que perdemos no fogo será adaptado para as telas com direção da galesa Prano Bailey-Bond.

Em entrevista ao jornal colombiano El Tiempo, Mariana Enriquez afirmou que quando começou a escrever Nossa parte de noite queria “aquela experiência muito absorvente de viver numa espécie de estado ficcional, à parte da vida”. Um estado que, ela admite, demanda muito, mas é fantástico. Mergulhar em seu romance-universo é justamente isso: uma experiência arrebatadora, por vezes dura e chocante, e totalmente inesquecível.

 

*Elisa Menezes é jornalista, editora e tradutora de Este é o mar e Nossa parte de noite

 

 

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