Quintas pretas

Entre gritos e escrevivências: imprensa negra pautando nossas vozes

5 / agosto / 2021

A jornalista Ashley Malia é a convidada desta semana do Quintas pretas, projeto da Intrínseca que abre espaço semanalmente para pessoas negras pautarem conversas sobre temas fundamentais para a nossa construção como sociedade.

Por Ashley Malia

Falar, segundo o dicionário, significa “exprimir por meio de palavras”, “contar”. É uma palavra tão simples, mas tão cara para pessoas pretas, que nunca tiveram a oportunidade de colocar suas vozes para fora. Em um país que invisibiliza negros e ignora a existência do racismo na sociedade, gente preta nunca pôde se expressar por meio da fala. É por isso que aprendemos a gritar.

Quando decidi estudar jornalismo, eu nem sabia direito o que significava ser negra no Brasil, mas dentro de mim a vontade de falar já ecoava. Sempre que eu digo para as pessoas que já fui tímida, ninguém acredita. Na primeira vez que me perguntaram como consegui vencer a timidez, me dei conta de que nunca tinha percebido que já havia sido tímida em algum momento da vida. É como se o “eu” do passado nunca tivesse existido. E a verdade é que, por muito tempo, eu quis esconder a minha existência, e talvez por isso o meu passado seja tão vago nas minhas memórias.

Hoje eu sei responder como deixei de ser tímida: a mídia negra entrou na minha vida e eu passei a enxergar o potencial da minha voz. Quando pude aprender jornalismo de uma perspectiva não branca, a partir da vida e das histórias da população negra, entendi que as nossas histórias importam. Parecia que um portal tinha sido aberto para mim, e desde então não consegui mais parar de falar. É como se as palavras tivessem se acumulado na minha garganta durante anos e só naquele momento se libertaram. Foi contando histórias de pessoas negras, em um jornal preto, que percebi quanto de nós estavam tentando apagar e invisibilizar. Esse é um dos papéis da imprensa negra no Brasil: contar para todo mundo o que estão tentando esconder sobre nós.

Minha primeira experiência com o jornalismo foi em mídia negra, mas também tive a oportunidade de ser repórter de um dos veículos mais tradicionais do Brasil, e foi aí que comecei a entender mais ainda a importância de incluirmos narrativas negras na imprensa. O jornalismo tradicional é, em si, racista. Estruturalmente racista. A pauta do dia nunca é negra, a não ser que estejamos falando das editorias de polícia, nas quais os negros são criminalizados e estereotipados. É como se fosse um grande palco para o racismo estrutural.

Diante dessa realidade, como podemos pautar pessoas negras de forma positiva? Quem conta a nossa versão da história? De que forma mostramos que gente preta também produz cultura, discute política, finanças e diversos outros assuntos? Precisamos é de um espaço em que discutimos economia com um economista negro, onde as conversas partem de uma perspectiva negra. E esse espaço sempre foi o da imprensa negra, que, desde os primeiros jornais negros, como O Homem de Cor e tantos outros, denuncia a realidade de um país racista e abre espaço para excelentes histórias de pessoas pretas.

A imprensa negra de hoje segue os passos daqueles que pavimentaram o caminho para que pudéssemos falar de nós e para nós. É fato que ainda temos muito a caminhar para tornar as mídias negras acessíveis a todos, e vamos precisar caminhar um pouco mais para fazer com que elas sejam valorizadas e reconhecidas.

Sem a imprensa negra, muitas histórias não seriam contadas e outras teriam apenas uma versão. Se nos últimos tempos a palavra “antirracismo” tem feito parte da rotina de alguns brasileiros, isso se deve à imprensa negra também, que trabalha diariamente para denunciar o racismo e lutar pela cidadania negra no Brasil. São inúmeros os jornalistas negros dedicados à tarefa de fazer da luta a principal pauta de seus cotidianos.

O Brasil precisa assumir o compromisso de combater o racismo no país, e uma das frentes desta ação é pensar numa imprensa que não promova a violência racial nem reforce os estereótipos sobre pessoas negras. O jornalismo tradicional tem muito a aprender com as mídias negras sobre como abordar direitos humanos e sobre a importância de debater determinados assuntos em um país majoritariamente negro e profundamente desigual.

A gente pauta vozes negras trazendo o povo preto para o centro dos debates. Não mais como coadjuvantes ou objetos de estudo, mas como protagonistas. Nossas escrevivências fazem parte da história do Brasil, e é por isso que a mídia negra continua resistindo e mantendo esse legado.

Mídia negra resiste!

 

Ashley Malia é baiana, jornalista, influenciadora digital e pós-graduanda em Gestão da Comunicação e Mídias Sociais. Nas redes, fala sobre questões raciais, literatura negra, autoestima e lifestyle. Em 2020, foi homenageada pela Câmara Municipal de Salvador com o Prêmio Maria Felipa pelo trabalho na internet e o diálogo com mulheres negras jovens. Como jovem negra e comunicóloga, acredita que a internet é um importante espaço de produção de diálogos capazes de movimentar a sociedade, e precisa ser democratizada.

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