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O silenciamento dos inocentes: o Hospital Colônia e os manicômios italianos no vintênio fascista

11 / junho / 2021

Por Isa Discacciati*

Antônio Gomes da Silva é um dos sobreviventes do Hospital Colônia de Barbacena e teve sua história revelada pela extensa pesquisa da jornalista Daniela Arbex no livro Holocausto brasileiro. Enquanto Cabo — apelido de Antônio — vagava nu e mudo pelo pátio do Pavilhão Afonso Pena, duas meninas brincavam em um clube campestre, a poucos quilômetros dali, em meio à sombra dos eucaliptos e ao barulho dos passarinhos, símbolos da liberdade. Uma dessas meninas era minha irmã, a outra era eu, nascidas nos anos de 1980 e 1981, respectivamente.

Nessa época, Cabo já estava no Colônia havia onze anos. E enquanto nós brincávamos, estudávamos, vivíamos nossas primeiras aventuras adolescentes e partíamos da gelada cidade do interior para estudar na capital, ele, que com seu apelido irônico podia dar voz de prisão, continuava encarcerado. Quando saiu do Colônia, em 2003, eu tinha acabado de me formar em comunicação, aos 22 anos.

Cabo passou 34 anos apartado do convívio social. Sua rotina incluía terapia de eletrochoque e excluía toda atividade que proporcionasse a cura da qual ele nunca precisou. Assim como 70% das pessoas internadas no Colônia, não tinha qualquer diagnóstico de doença mental.

O grupo dos indesejáveis sociais que eram enviados ao Colônia abarcava miseráveis, negros, prostitutas, militantes políticos, homossexuais, alcoólatras, epilépticos, jovens grávidas (muitas vezes vítimas de estupro), crianças com deficiências físicas que envergonhavam os pais e qualquer indivíduo que fugisse aos modelos sociais da época. Uma época que, infelizmente, durou muito. E que fez pelo menos 60 mil vítimas. 

Nós não sabíamos o que acontecia por trás daqueles muros, mas convivíamos incomodados com um título que também nos pertencia. A concentração de hospitais psiquiátricos, justificada pelo clima propício, fez com que Barbacena ficasse conhecida como a Cidade dos Loucos, nome que contrastava com seu outro título, o de Cidade das Rosas. Rosas que muitas vezes eram plantadas nos canteiros do município pelos próprios internos do Colônia, designados para trabalhos braçais (sem nenhuma remuneração) pela prefeitura da cidade.

E foi assim que conhecemos alguns dos sobreviventes do holocausto. Vestidos com o famoso azulão, eles vagavam por Barbacena, capinando jardins, consertando o asfalto, recebendo olhares curiosos ou repulsivos e alimentando nossas fantasias infantis.

As denúncias que apontavam a superlotação, as péssimas condições de higiene e as acomodações inadequadas responsáveis pelas mortes por frio e fome no Colônia só ganharam força na voz de Franco Basaglia. O médico italiano, símbolo da humanização nos modelos de atendimento nos hospitais psiquiátricos, esteve em Barbacena em 1979, um ano depois da assinatura da Lei 180, na Itália, que ficou conhecida como Lei Basaglia. Promulgada durante a gestão de Tina Anselmi, primeira mulher a ocupar um cargo de ministra no país, a lei pioneira dispunha sobre a reforma psiquiátrica e determinava o fechamento dos manicômios.

Desconcertado após a visita, Franco Basaglia comparou o Hospital Colônia a um campo de concentração. Mas a imagem do holocausto denunciada pelo italiano em Barbacena, em 1979, reproduzia parte da realidade vista em seu país durante o vintênio fascista (1922-1943).

Em uma tarde de primavera, visitei o Museo del Manicomio, na ilha de San Servolo, em Veneza. Assim como no Museu da Loucura, de Barbacena, o acervo suscita inquietação. Algemas, camisas de força, aparelhos de eletrochoque e muitas imagens de seres humanos marginalizados. No mesmo local onde funciona uma fundação que leva o nome de Basaglia estão reunidos milhares de documentos que atestam que o holocausto psiquiátrico não foi exclusividade do Colônia. Entre os documentos, estão as cartas de uma mulher endereçadas a um homem importante, e uma delas diz: “Enquanto estou longe, prisioneira em um vulgaríssimo manicômio, submetida à fome, às torturas, a ultrajes inimagináveis, tomada pelo desespero, você se cala.”

 

O fascismo e os hospitais psiquiátricos: a história de Ida Dalser 

O regime totalitário de Benito Mussolini teve grande influência na dinâmica dos hospitais psiquiátricos. Por um lado, garantia a manutenção dos ideais fascistas, prendendo nos manicômios as mulheres que não correspondiam à imagem de esposa e reprodutora virtuosa da raça italiana. Por outro, silenciava entre os muros dos hospícios seus opositores, reprimindo o dissenso político. Uma pesquisa feita pelo historiador Matteo Petracci, a partir de documentos do Arquivo Central do Estado Italiano, levantou o nome de 475 antifascistas internados em manicômios italianos. Cento e vinte e dois deles morreram dentro dos hospitais.

Em M, o filho do século, obra que faz uma profunda análise da ascensão do regime fascista, o autor Antonio Scurati cita um nome emblemático, apesar de pouco conhecido, que esteve no centro da repressão fascista nos manicômios. Ida Dalser foi a primeira mulher de Benito Mussolini. Poliglota, autônoma, empreendedora e inteligente, abriu um salão de beleza em Milão, em 1913, e começou uma relação amorosa com o Duce, com quem teve um filho, em 1915, Benito Albino. Dalser apoiou incondicionalmente Mussolini no início da carreira e chegou a vender o salão para financiar sua atividade política.

Sua vida sofreu um revés quando Mussolini a abandoou e se casou com Rachele Guidi. A partir daí, Dalser começou uma batalha pelo reconhecimento de seus direitos, escrevendo cartas a autoridades, perseguindo Mussolini em eventos públicos e ameaçando a imagem dele.

A política repressora do regime totalitário definiu o destino de Ida Dalser respaldada pela legislação da época, que se baseava em dois pressupostos para a internação em hospícios: a periculosidade social e o escândalo público. Ida era uma peça incômoda e uma mancha na biografia de Mussolini, que propagava valores conservadores de devoção e respeito à família.

Depois de perseguida e vigiada, a mulher secreta do Duce foi reclusa no manicômio da cidade de Pergine, onde continuou escrevendo cartas que contavam detalhes de sua história. Em 1926, ela deu entrada no manicômio feminino da ilha de São Clemente, em Veneza, onde foi sujeita a procedimentos como hidroterapia (banhos quentes e gelados alternados), terapia do sono, alimentação forçada com sonda e métodos violentos de contenção. Ida morreu em dezembro de 1937, aos 57 anos, sem ter revisto o filho. Benitinho, que fora reconhecido formalmente pelo pai em 1916 ¾ com quem jamais teve contato ¾, também foi vítima do regime. Ele faleceu aos 26 anos, em 1942, no manicômio de Mombello, onde foi internado compulsoriamente.

A história de Dalser só veio à luz em 2000, quando o jornalista italiano Marco Zeni, após longa pesquisa, escreveu o livro L’ultimo filò. Em 2009, o consagrado diretor italiano Marco Bellocchio produziu o filme Vincere, revelando no cinema o segredo de Mussolini. Agora é a vez da história do Colônia, brilhantemente contada por Daniela Arbex, ganhar uma nova versão. A partir do dia 25 de junho, a Globoplay e o Canal Brasil transmitirão a série Colônia, relembrando que conhecer a história é a melhor forma de não deixar que ela se repita.

 

*Isabela Discacciati é jornalista e vive em Treviso, norte da Itália. Especializada em cultura e patrimônio gastronômico pela Universidade Ca Foscari, de Veneza é autora do guia Passeios em Veneza e realiza tours temáticos pela cidade. Leitora entusiasmada desde criança, se inspira no universo dos livros para escrever e contar histórias.


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Comentários

2 Respostas para “O silenciamento dos inocentes: o Hospital Colônia e os manicômios italianos no vintênio fascista

  1. Isa , já te acompanho faz um tempo no Instagram e sou fã de seu trabalho . Parabéns pelo engajamento e por compartilhar conhecimento com seus leitores . ?????

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