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Lugares assombrados por nós mesmos: o papel do ambiente nas histórias de terror

8 / junho / 2021

Por Josué de Oliveira*

Narrativas de terror tradicionalmente se valem da ambientação para despertar o medo que se espera delas. Isso pode tomar muitas formas. A mais óbvia envolve lugares assombrados, construções onde o sobrenatural habita e se manifesta. O clichê da mansão vitoriana abandonada e decrépita vem à mente, seus fantasmas vagando pelos mesmos corredores e cômodos que percorriam em vida, presos ali por algum assunto não resolvido. Todos já lemos ou assistimos alguma história que segue esse molde.

Mas não são necessários espíritos para compor uma locação de terror. Nos filmes do gênero slasher O massacre da serra elétrica, Sexta-feira 13 e Halloween são alguns exemplos —, um elemento muito importante é o “lugar terrível” (terrible place). O termo é usado pela professora e teórica Carol J. Clover. De acordo com ela, o lugar terrível não se caracteriza por ser velho, sombrio e decaído — signos muito tradicionais do terror enquanto gênero narrativo, capazes de gerar um temor quase imediato —, mas pelas estranhas famílias que nele vivem. O ponto é que essas localidades encapsulam o que há de pior nos monstros que as habitam, servindo, dessa forma, como representações do que há de errado com eles — e, por consequência, dos medos e dos temas que a história se propõe a tratar.

O Massacre da Serra Elétrica (1974)

A ideia de que ambientes podem expressar aspectos sombrios da experiência humana é muito importante na ficção de Andrew Michael Hurley. Em Terra faminta, seu mais recente romance, acompanhamos um casal, Richard e Juliette Willoughby, em suas tentativas de lidar com a perda do filho Ewan, de apenas cinco anos. Juliette pensa que o garoto de algum modo continua lá, na casa afastada onde vivem. Enquanto isso, Richard se distrai vasculhando o terreno da propriedade – a infértil Starve Acre, terra onde nada cresce e palco das lendas locais cheias de morte e loucura.

A literatura de Hurley costuma ser apontada como parte do subgênero folk horror, do qual fazem parte filmes como A Bruxa e The Wicker Man. De modo geral, essas narrativas se utilizam de elementos do folclore de certas regiões para criar suas tramas e construir uma atmosfera de estranheza e instabilidade. São histórias que buscam em outras histórias — aquelas que se transformaram em tradição popular — as bases para gerar medo. Também fazem parte do repertório do autor as paisagens rurais idílicas, uma tentativa de romper com as imagens de paz e tranquilidade que tais lugares comumente evocam.

Para Hurley, é falsa a noção de que a vida no campo é sinônimo de bem-estar e sossego. A proximidade da natureza traz consigo um peso e uma profundidade que podem ser tão belos quanto desoladores, criando desafios únicos na vida de seus protagonistas. Da mesma forma, a vida num vilarejo pacato cria as condições para relacionamentos mais próximos, mas também faz com que os olhos se voltem na direção de qualquer pessoa minimamente diferente, criando uma ameaçadora expectativa de rejeição para os recém-chegados. Além disso, há sempre a herança das histórias que compõem o imaginário local, tão importantes para a constituição desses lugares quanto os campos que se estendem por todos os lados e os animais que correm entre a grama baixa.

Em Terra faminta, o aspecto folclórico se apresenta na forma de lendas sobre Starve Acre e um lendário carvalho que um dia esteve de pé ali — cujos galhos, segundo conta a tradição, serviram de sustentação para enforcamentos públicos. Ainda pior: o campo estaria de algum modo ligado a uma figura misteriosa da crença popular, Jack Grey, que Ewan afirmava ouvir mandá-lo executar atos violentos, impensáveis para uma criança vinda de um lar perfeitamente saudável. A crer no que dizem as histórias, há mais na terra árida de Starve Acre do que aquilo que os sentidos conseguem captar.

Starve Acre observa e influencia a vida dos Willoughby com sua aparência seca e segredos enterrados. A atmosfera hostil se deve tanto a suas características objetivas — o aspecto da terra — quanto a um passado sanguinário que sobrevive nas lendas do vilarejo. Histórias que preservam certas formas de ver o mundo, a maldade humana, que procuram explicar as razões por trás dos atos mais horrendos que alguém poderia praticar; histórias que identificam lugares como terríveis e, em troca, os infectam para sempre.

A Bruxa (2015)

Parte da lógica dos lugares terríveis na literatura e no cinema de horror vem de uma familiaridade distorcida, a ideia de que um lugar conhecido e ordinário pode ser transformado num ambiente hostil. Em O nevoeiro, filme baseado num conto de Stephen King, o lugar terrível é um supermercado onde um grupo de pessoas se abriga enquanto criaturas gigantescas e monstruosas caminham pelo mundo lá fora. Não há nada de estranho num mercado; é um local seguro, onde conhecemos as regras e nos sentimos no controle. Essa história, no entanto, mostra que ali é que estão os verdadeiros monstros, transformando um lugar antes inocente num pequeno inferno.

Trata-se de torcer as expectativas existentes sobre um lugar, e em Terra faminta isso se manifesta no terreno estéril de Starve Acre, que se torna representação da ruína psicológica dos Willoughby. Um campo deveria ser fértil, e sua visão suficiente para despertar sentimentos de calma, mas nesse as sementes não brotam, e sua única promessa é a desolação. Não é por acaso que, logo no início da história, a primeira coisa que Richard desenterra de Starve Acre é a ossada de um animal: o campo revela sua natureza deformada e procura estender sua infecção para dentro de uma família arrasada pela perda.

Enquanto tateiam em busca de explicações para o inexplicável e de formas de seguir em frente, os Willoughby são afetados por histórias sombrias que, verdadeiras ou não — isso não importa —, já se fixaram no lugar que os cerca. E em suas mentes. No horror de Andrew Michael Hurley, nossas narrativas assombram o ambiente, que, por sua vez, abraça e conserva os medos que voltarão para nos apavorar.

*Josué de Oliveira é escritor, desenvolvedor de eBooks e podcaster. Publicou contos em antologias de suspense e ficção especulativa, além da noveleta de terror Herdeiro, lançada de modo independente. Também é criador e produtor do Randômico, podcast quinzenal que tenta concatenar assuntos tão fascinantes quanto aleatórios.


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