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O 13 de maio e o Bonde da História

13 / maio / 2021

Por Joice Berth*

Imagina que, por um revés do destino, você se vê na situação terrível de ter que trabalhar durante um ano inteiro, sem remuneração, confinada/o em um lugar em condições precárias de higiene e sem o mínimo de conforto, comendo apenas o suficiente para manter-se de pé e forte para dar conta do trabalho. Imagina se, além disso, fosse imposto a você, diante da sua esperada e legítima revolta por se ver nessa condição absolutamente desumana, castigos e torturas físicas e psicológicas constantes.

Imaginou? Terrível, não é mesmo?

Pois essa foi a situação das pessoas africanas que vieram para a América, forçosamente, mas… não foi por apenas um único ano. Foram 388 anos, ou quase quatro séculos. Podemos dizer ainda que foram mais ou menos cinco gerações de descendentes africanos que nasceram e se formaram dentro desse cenário mais do que triste, desumanizante, humilhante.

Nossos livros de história, durante muito tempo, sempre informaram sobre esse período de maneira distorcida, a ponto de nos fazer acreditar que foi tudo aceito por essa população. Mas pensem comigo, inteligentes leitores e leitoras: é da natureza humana aceitar maus-tratos de maneira pacífica? Você aceita ou aceitaria sem nem ao menos tentar questionar ou se livrar de uma situação de horror?

Suponho que não. Então devemos questionar com bastante sinceridade: por que os cerca de 4 milhões de africanos que foram trazidos para cá de maneira forçada e violenta aceitariam assim, de maneira tão cordata e sem nenhum questionamento? Lembrando que esse número representa somente os que vieram para o Brasil, mas a escravidão ou escravização, já que foi uma ação pensada e executada, se deu em toda a América.

Mas será que no dia 13 de maio essa barbárie teve seu fim, como nos conta os livros de história?

Em parte. A Abolição da Escravidão no Brasil, último país a efetivar essa ação política na América, foi o fim institucional. Novamente recorro a sua imaginação, inteligentes leitores e leitoras: imaginem que após esses quase quatro séculos, em vez de receber ao menos uma ínfima retribuição por séculos de exploração, você fosse literalmente jogado para fora das fazendas, sem ter qualquer perspectiva do que fazer com a sua tal liberdade e nenhuma condição de infraestrutura básica para sobrevivência, sua e dos seus.  Quando falo em infraestrutura básica necessária à sobrevivência, estou falando de casa/comida e trabalho para bancar isso tudo. A verdade é que a abolição da escravidão no Brasil foi o desfecho de uma operação política que já vinha sendo articulada pela coroa portuguesa, pressionada pelos abolicionistas e pela ação dos quilombos (a prova real de que a negritude escravizada não aceitou de bom grado permanecer nessa condição!).

Mas o que vocês, inteligentes e humanos leitores e leitoras, têm a ver com isso, já que não foram vocês que, com as próprias mãos, construíram esse estado de coisas que vitimou tanta gente? Nada, exceto o fato de que usufruem, como herdeiros das benesses da Casa-Grande, de tudo que foi construído com a participação protagonista dos escravizados. E cabe a vocês, hoje em dia, munidos da notória disposição empática e da generosidade humana que todos somos capazes de desenvolver, trabalhar da maneira que for possível para reparar esse terrível erro dos ancestrais escravizadores.

O começo desse trabalho é o entendimento de que esse erro traçou com mãos firmes e indefectíveis os caminhos que nos levariam a grande parte das desigualdades que presenciamos hoje em dia e que, direta ou indiretamente, afetam a todos, branquitude, negritude, indígenas, pobres, ricos, mulheres, homens, crianças, velhos etc. As desigualdades raciais que resultaram dos processos históricos relatados aqui, de maneira muito resumida, fazem parte do bolo nababesco das violências cotidianas que os jornais nos informam, entre outras consequências que passam despercebidas pela grande mídia. Até na formação das cidades, essas desigualdades se fazem presentes.

O bonde da história não para. Ele segue firme, forte e, em alguns casos, destrutivo se permanecer desgovernado, sem rumo certo. Nossa consciência, infalível e atenta, pode ser a mão firme que conduz esse bonde para um rumo assertivo, equilibrado, justo e feliz. E o dia 13 de maio, ao contrário do que muitos ainda pensam, não é um dia de gratidão e tampouco de comemoração, mas de reflexão sobre como as omissões e descasos com problemas fazem com que estes criem raízes profundas e nocivas e se ramifiquem, dificultando nossos sonhos de uma nação de paz e harmonia, onde toda e qualquer pessoa consegue se desenvolver dependendo apenas da meritocracia como filosofia de vida. Somos pessoas inteligentes e dotadas de todo o aparato subjetivo que nos capacita a desenvolver a empatia e cultivar a coragem necessária para somarmos esforços e esmiuçar feridas do passado para curá-las definitivamente. Concorda? Te vejo nas lutas diárias por uma nova ordem civilizatória de bem-estar coletivo.

 

*Joice Berth é arquiteta e urbanista de formada pela Universidade Nove de Julho, psicanalista em formação e escritora, autora do terceiro livro da Coleção Feminismos Plurais, Empoderamento. Tem ampla atuação nas redes sociais, onde discute tanto os assuntos que são foco de sua pesquisa acadêmica, como questões relacionadas à autoestima, política e diversidade. Atualmente é colunista mensal da revista Elle Brasil e participa da Coleção Ensaios sobre a Pandemia, da Editora Todavia com o tema Violência de Gênero.

Comentários

2 Respostas para “O 13 de maio e o Bonde da História

  1. Texto muito bem conduzido na sua análise. Desperta a consciência e o entendimento.
    Realmente, nos bancos escolares, não recebemos esclarecimentos sobre a real razão que levou à abolição, nem as consequências desse ato, para os escravos.
    Não sei como está sendo conduzida essa questão, no aprendizado atual. Nos acostumamos a exaltar a abolição e não, entrarmos no mérito da questão.
    Pensava, até um tempo atrás, que o preconceito, no Brasil, estava mais na questão da condição social, que os negros ricos e/ou famosos, não sofriam essa segregação.
    Ledo engano. Com todo acesso aos acontecimentos podemos analisar, com mais clareza a situação como é, na realidade. Triste conclusão. Quase nada mudou. Ainda precisam de leis específicas , para a inclusão social, entrando no sistema de cotas, para fazer parte da sociedade elitista.
    Não sei se ainda leem, na escola, o poema ” Navio Negreiro”, de Castro Alves. Não há como não ser tocado por ele.

  2. Sou descendente de negros, brancos e índios! Este sou eu e minha alma é uma mistura de toda essas gentes! Que viva o povo brasileiro!

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