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O perigo mora ao lado

3 / março / 2021

Por João Lourenço*

Eles são charmosos, inteligentes e carismáticos. Perspicazes leitores de emoções alheias, comportam-se como príncipes. São atenciosos e disponíveis. E quando a “presa” se entrelaça à sua rede, atacam. Eles são os psicopatas e, de acordo com Thomas Erikson, não só vivem entre nós como estão mais próximos do que imaginamos.

Autor do best-seller internacional Cercado de idiotas, Thomas Erikson sentiu isso na pele ao se tornar vítima de uma psicopata . Após trocar mensagens com uma leitora via redes sociais, ela passou a apresentar um comportamento obsessivo. A fã procurou a esposa de Erikson nas redes e o acusou de ter dormido com mais de 100 mulheres e engravidado várias delas. Também assediou os amigos e outros escritores da rede de contatos de Erikson. Além de todo o desconforto e o estresse decorrentes de tantas mentiras, o autor afirma que esse assédio foi um dos motivos do fim de seu casamento. E foi esse episódio que o levou a escrever Cercado de psicopatas: como evitar ser explorado pelos outros no trabalho e na vida pessoal.

Em Cercado de psicopatas, Erikson propõe técnicas para identificar pessoas manipuladoras e se proteger delas. A pesquisa do autor revela que cerca de 4% da população mundial é formada por psicopatas. Embora seja um conceito antigo, a psicopatia ainda é marcada por estereótipos, geralmente atrelada a serial killers e estupradores. Mas esses são quadros de psicopatia clínica, que apresenta consciência e deliberação dos atos. No livro, Erikson está mais interessado na psicopatia do dia a dia: abuso entre pais e filhos, patrão e funcionário, marido e mulher e entre amigos. Essa manipulação do cotidiano é silenciosa, mas perigosa.

 

O estereótipo do psicopata

Erikson divide o comportamento humano em quatro cores: azul, vermelho, amarelo e verde. Cada um deles apresenta características positivas e negativas. O azul é analítico e introvertido; o vermelho representa um comportamento dominante e extrovertido; e assim por diante. As cores funcionam como fórmula pronta para auxiliar o leitor a identificar os sinais em si e nos outros. Mas, apesar de bem-intencionado, é preciso tomar cuidado, afinal, o ser humano não cabe em uma caixa. “O alerta do autor é necessário e importante. Serve para ajudar a perceber que o problema existe e está ao nosso redor, mas temos que lembrar que os psicopatas também se camuflam, muitos sinais são subjetivos e não são fáceis de distinguir, todo caso precisa ser analisado individualmente”, afirma a psicoterapeuta Vivian Moreno.

Além de assustador, o estereótipo do psicopata também é um tanto sedutor. “Tem muito narcisismo em jogo. Parece-me que é, justamente, isso que seduz as pessoas de uma forma geral: o se sentir completo, o prescindir do outro”, afirma a psicanalista Jaqueline Feltrin.

O problema é que o psicopata olha para o outro como um objeto. “Acho importante destacar que dentro da organização psíquica do psicopata o outro não significa absolutamente nada. Por esse motivo, tudo vale, tudo pode”, avisa Feltrin. Assim como Erikson aponta no livro, há uma diferença entre casos extremos e velados. “Todos nós temos um pouco disso. Há pessoas, por um lado, que se relacionam dessa forma sem necessariamente cometer um crime”, reflete Feltrin.

 

Análise e lacração

Há uma intersecção entre relacionamentos tóxicos e a cultura do cancelamento. Como Erikson defende, podemos estar cercados de psicopatas, mas, em algum momento, provavelmente fomos e/ou agimos como um psicopata na vida de alguém. Como encontrar um meio-termo? “O cancelamento nos dá notícias de um funcionamento psíquico muito arcaico, incapaz de lidar com a ambivalência, cindindo tudo em ‘bom’ e ‘mau’, favorecendo, por isso, os ataques e, consequentemente, a percepção de um mundo muito perigoso”, responde Feltrin.

Apesar de o assunto ser discutido à exaustão nos meios de comunicação, ainda não aprendemos a lidar com as nuances dos relacionamentos abusivos. Ainda estamos no modo reativo: tudo ou nada, certo ou errado. “Podemos amar e odiar ao mesmo tempo. Isso possibilita a abertura de espaço para o diálogo, a diferença e a reparação”, afirma Feltrin. Reparação é a palavra-chave. Afinal, esconder comportamentos abusivos não elimina o problema. Pelo contrário, pode colaborar para que a pessoa cancelada volte a atacar; e com maior intensidade. Esse é um fenômeno perigoso do coach lacração perpetuado nas redes sociais. A informação precisa, sim, chegar e ser discutida entre o público, mas a mesma requer uma filtragem pelas lentes de especialistas. Caso contrário, ficamos presos na ilusão de acreditar que isso acontece com “todo mundo, menos comigo”.

 

A vítima fraca

Geralmente as pessoas não acreditam que podem ser manipuladas e controladas facilmente. A fraqueza é vista apenas no outro e por isso acabam se tornando “vítimas”. Estamos mais atentos por termos mais acesso à informação, mas ainda temos um longo caminho a percorrer. Para melhorar a discussão, precisamos levar em consideração que nem sempre a dinâmica dos relacionamentos se encontra em nós ou no outro. Às vezes, pode estar no vínculo. “O vínculo pode adoecer e causar sofrimento. Mas se as pessoas permanecem, a relação atende, de alguma forma, às demandas das duas partes aí depositadas”, observa Feltrin.

Seja em casos deliberados ou velados, a vítima encontra dificuldade para sair de situações de abuso e controle. Isso ocorre pois o abusador, ao identificar as fragilidades do outro, mina a rede de apoio da vítima, colocando-a contra amigos e familiares, por exemplo. Assim, isolada, a vítima passa a acreditar que não pode viver sem a outra pessoa. No livro, Erikson alerta o leitor a prestar atenção nos fios soltos, nas bandeiras vermelhas que o psicopata deixa pelo caminho. “Podemos treinar para identificar alguns sinais, mas, novamente, as relações são subjetivas. Um dos sinais básicos é observar como essa pessoa que você acabou de deixar entrar na sua vida se comporta com as pessoas que são o seu porto seguro”, explica Vivian Moreno.

 

S.O.S

Vale ressaltar que psicopatas se aproveitam de períodos e situações vulneráveis. E quem não está fragilizado com a pandemia que assola o mundo? Então, os cuidados precisam ser redobrados. “Percebo uma carência generalizada. A problemática é que todos nós estamos carentes de afeto e isso vem antes dos efeitos do isolamento social causado pela pandemia”, afirma Moreno. Em Cercados por psicopatas, Erikson recomenda duvidar de grandes demonstrações de amor, principalmente no começo das relações. “Esse bombardeio de amor é perigoso, pois todo excesso esconde uma falta. Quando a pessoa se apresenta muito solícita, muito encantadora, precisamos sair da idealização e trazer e verificar o relacionamento na luz do dia a dia”, recomenda Moreno. Muitas vezes, o cuidado excessivo nada mais é do que controle. “O abusador costuma colocar a vítima em situações desconfortáveis. Quando questionado, ele apresenta a velha desculpa: ‘Mas eu faço isso porque eu te amo, porque me preocupo demais’”, diz Moreno.

As lições de Cercado de psicopatas são válidas e ilustrativas. Mas a jornada de autoconhecimento não é linear e não tem linha de chegada. O autor ressalta a importância de estar em dia com as emoções e o processo de individualização. Lembre-se: o psicopata tem uma meta e você também deve ter. “Quanto maior o entendimento sobre nossos desejos, mais difícil a invasão do outro”, ensina Moreno. Anotou?

 

*João Lourenço é jornalista. Passou pela redação da FFWMAG, colaborou com a Harper’s Bazaar e com a ABD Conceitual, entre outras publicações estrangeiras de moda e design. Atualmente está em Nova York escrevendo seu primeiro romance.


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