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Mais do que dez lições sobre bem mais do que a pandemia

11 / março / 2021

Por Alexandre Sayd*

Nascido na Índia e naturalizado americano, Fareed Zakaria é um jornalista com formação nas universidades de Yale e Harvard, apresentador de um famoso programa de política da CNN americana e colunista do The Washington Post. Autor de vários best-sellers sobre política e relações internacionais, o escritor de Dez lições para o mundo pós-pandemia nos traz uma visão “realista-otimista” das transformações que o mundo vem sofrendo neste momento conturbado.

À primeira vista, pode parecer apressado que alguém já tenha produzido uma obra sobre os efeitos do coronavírus na sociedade e se coloque a lançar previsões tão precocemente, mas, embora o título mencione a pandemia de Covid, o livro na verdade trata de forças que já estavam em movimento e apenas se aceleraram com a chegada do vírus. Essas forças atuam em vários campos, do cultural ao político, do econômico ao ambiental.

O comércio on-line já vinha crescendo de forma consistente havia vários anos, e a vida cotidiana já estava cada dia mais integrada ao mundo digital. O avanço de tecnologias capazes de substituir mão de obra humana por robôs ou inteligências artificiais, somado às constantes crises econômicas, já dava o alarme para um provável desemprego massivo em escala global. Os grandes atores do teatro político mundial – EUA, China e Europa, principalmente – eram os mesmos, e especialistas de várias áreas alertavam que a acelerada deterioração da natureza tornava uma catástrofe climática ou sanitária iminentes. O que mudou com a pandemia? Apenas a velocidade, a escala e o senso de urgência com relação a estas questões.

Zakaria se vale de seu vasto conhecimento histórico para demonstrar não apenas que o que estamos vivenciando era esperado, como também que é possível antecipar, em certa medida, o que está por vir, considerando todos os caminhos disponíveis. Ao se utilizar de comparações com eventos de outras pandemias, como a peste bubônica ou a gripe espanhola, crises econômicas, como a de 1929 e 2008, e até mesmo catástrofes climáticas, como o “dust bowl” nos anos 1930, e as duas guerras mundiais, o autor consegue tornar seu ponto de vista irresistivelmente convincente.

Segundo Fareed, um sistema só pode ter duas de três qualidades: abertura, dinamismo e estabilidade. O sistema capitalista global em que vivemos é extremamente aberto e dinâmico, porém perigosamente instável, o que pode trazer consequências muito indesejadas.

Vejamos o avanço da hegemonia dos Estados Unidos durante os anos 1990, com o fim da URSS, por exemplo. A integração internacional era maior do que nunca e o mundo parecia enfim unido em torno de um único ideal de sociedade. Porém isso não era totalmente verdadeiro, e em muitas partes do globo as pessoas se ressentiam de ter suas culturas ameaçadas. Foi essa insatisfação de uma minoria em face da desenfreada expansão da cultura e valores ocidentais que levou um grupo de muçulmanos a provocar o covarde atentado terrorista de 11 de setembro de 2001. Similarmente, uma única falha em um único produto obscuro de Wall Street foi suficiente para causar um efeito em cascata que levou toda a economia global ao colapso em 2008. Até mesmo a pandemia pode ser encarada como um efeito colateral da velocidade e abertura do capitalismo global. A deterioração de ecossistemas, associada às nossas práticas industriais de produção e consumo de carne, propiciou o ambiente perfeito para o surgimento do coronavírus. Animais confinados e quase idênticos geneticamente funcionam como uma verdadeira placa de Petri para micro-organismos, e a destruição de habitats leva animais selvagens a uma convivência cada vez mais próxima com o ser humano.

Não é que o sistema seja ruim. Em muitos aspectos, as coisas nunca foram melhores para as pessoas. Vivemos um período de paz inédito na história, a expectativa de vida é muito maior do que há 50 ou 100 anos e a desigualdade entre os países é menor. Porém, com todas as suas qualidades e avanços, o capitalismo global é incapaz de dar respostas adequadas a certos problemas cuja solução simplesmente não é lucrativa, como a questão do aquecimento global, da desigualdade entre ricos e pobres, ou mesmo tópicos relativos à saúde pública, que ganharam o centro das atenções com a pandemia.

Considerando a infraestrutura de saúde dos EUA – uma das melhores do mundo –, deveria ter sido fácil garantir que todos os cidadãos fossem testados e que equipamentos básicos de segurança fossem disponibilizados quando o país foi atingido pelo vírus, mas, como a assistência médica americana funciona como um empreendimento lucrativo, tudo precisava ser pago pelas pessoas, e o custo disso é proibitivo para grande parte delas.

Zakaria nos mostra que, por conta dessa vulnerabilidade inerente ao sistema em que vivemos, não podemos deixar tudo por conta dele. Precisamos de governos eficientes e atuantes, que saibam quando é o momento de interferir e mudar as regras. É isso que observamos nos países que tiveram o melhor desempenho ao lidar com a pandemia. De ditaduras como a China a democracias como a Noruega ou a Nova Zelândia, o elemento comum foi justamente a capacidade do governo de agir e tomar as medidas necessárias, mesmo quando tais medidas representavam uma ameaça aos mercados, ao lucro, à economia e à integração internacional.

Com um texto simples e objetivo, sem rebuscamento, mas ainda assim recheado de uma erudição deliciosa, Dez lições para o mundo pós-pandemia é um livro que nos permite enxergar nosso próprio tempo com lentes menos embaçadas do que as que usamos no cotidiano. Neste período confuso e incerto, é definitivamente uma leitura muito pertinente e, até certo ponto, alentadora, pois nos mostra que temos caminhos possíveis para superar essa crise e que, se agirmos com sabedoria, poderemos tirar o melhor disso tudo e construir uma sociedade melhor e mais resiliente.

 

*Alexandre Sayd é jornalista com passagem pela Tv Globo e Tv Brasil.


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