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Leopardo negro, lobo vermelho: uma epopeia africana sobre sangue, dever e destino

12 / fevereiro / 2021

Por Gabriel Trigueiro*

“Amamos os livros de autores como David Foster Wallace e Thomas Pynchon. Livros complicados, escritos por garotos brancos, não é? Mas por que a diversão tem que ficar só com eles?” Com essa indagação, Marlon James, escritor jamaicano premiado com o Man Booker Prize em 2015 e autor de quatro romances, interrompe uma das muitas entrevistas que concedeu na ocasião do lançamento de seu quarto livro: Leopardo negro, lobo vermelho — uma obra que o hype editorial pré-publicação chamou de “Game of Thrones africano”.

Quase toda a literatura canônica do gênero de fantasia é formada por valores, ideias e mesmo uma linguagem que é, em sua base, europeia e cristã. Para citarmos apenas alguns exemplos básicos, basta lembrar de O Senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien, e As Crônicas de Nárnia, de C.S. Lewis. Tanto a Terra Média, no primeiro caso, quanto Nárnia, no segundo, eram ambientações evidentemente inspiradas na Europa medieval.

Ao contrário de seus antecessores, Marlon James usa diversas referências africanas, tradição oral iorubá, alterna um registro escrito ora em inglês tradicional, ora em patoá jamaicano, além de mitologias e folclores de origem do Norte da África (sudanesa, argelina etc.) e do Chifre da África (origem somali, etíope etc.).

O ponto principal aqui é o de que James nos recorda que normalmente aquilo que tomamos por “universal” na literatura canônica é, quase sempre, muito mais paroquial e limitado do que em geral se supõe. Isto é, aquilo que é apresentado como “universal”, na literatura, é apenas branco, cristão e europeu.

É evidente que argumentar isso não implica em desqualificar ou minimizar a importância do cânone. Antes de ser um grande escritor, Marlon James é um grande leitor e alguém que evidentemente está muito familiarizado com a importância de uma determinada tradição literária e intelectual “ocidental”, na falta de termo melhor.

Seu plano é que Leopardo negro, lobo vermelho seja o primeiro volume de uma série chamada Trilogia da Estrela Negra. A ideia surgiu inicialmente quando Marlon assistiu à série The Affair, com sua narrativa entrecortada a partir de diferentes ângulos e personagens, como Rashomon, filme de 1950, de Akira Kurosawa. Na trilogia, o escritor pretende contar sempre a mesma história, mas sob diversas perspectivas.

(Carolyn Cole/ Los Angeles Times)

Leopardo negro, lobo vermelho tem um tom alegórico que poderia ser chamado, sem exageros, de bíblico. Além disso, como parte de sua pesquisa durante o processo criativo, o autor releu A odisseia. A verdade é que James parte de um pressuposto simples e verdadeiro: a ideia de que o que informa a noção ocidental de natureza humana é o somatório de mitos e folclores e narrativas originalmente gregas e romanas. Ou, por outro lado, que essa percepção do que é humano se fundamenta em uma base presente na tradição literária europeia e, com frequência, é naturalizada e tomada como o default.

No entanto, alguém como James, crescido e educado na Jamaica, conseguiu enxergar esse tipo de coisa a partir de, digamos, uma distância crítica. Até porque ele mesmo recebeu ao longo de sua formação um sem-número de outras influências e referências intelectuais e filosóficas. O ponto principal aqui é sua percepção de que seria necessário — e mais do que necessário, seria interessante — explorar dentro de um gênero essencialmente europeu, do ponto de vista ficcional, todas as possibilidades narrativas e imaginativas derivadas de um universo de referências estéticas e artísticas não europeias.

 

Sangue e fantasmas nigerianos

O gênero de fantasia se constituiu a partir dos contos de fadas dos Irmãos Grimm, dos mitos nórdicos, das lendas medievais e narrativas afins. A ideia de James era adaptar, somar, reler esse tipo de história a partir daquelas contadas por gente como seu avô: um exemplo básico de como determinados saberes e tradições permaneceram vivos e seguem sendo transmitidos oralmente, a despeito dos esforços colonizadores dirigidos no sentido oposto.

Em Leopardo negro, lobo vermelho temos um monte de personagens, além de um enredo razoavelmente simples e claro. Em contraponto, James nos apresenta uma porção de subenredos complexos e entrecortados, fragmentados e organizados a partir de uma cacofonia de vozes e de registros. Definitivamente não é um livro simples e isso, aliás, é uma escolha consciente do autor.

A história é contada, para início de conversa, por um narrador do qual não temos pista alguma de que seja confiável. O personagem principal é conhecido apenas como Rastreador.

Na maior parte do tempo ele conta com a companhia de um caçador metamorfo que ora está em sua forma humana, ora em forma de leopardo. Ambos, e mais alguns personagens secundários, porém igualmente interessantes, estão à procura de um garoto desaparecido e para isso viajam através de incontáveis reinos e dimensões.

A trama que se desenrola é brutalmente violenta. Aspecto que, aliás, lembra a escrita de autores como Cormac McCarthy, por exemplo. Mas essa violência jamais é gratuita e tampouco meramente catártica; seu papel é a um só tempo alegórico e transcendente. Ela sempre está a serviço de algo maior, de contornos nem sempre definidos: funciona como uma espécie de linguagem, cujo alfabeto e regras gramaticais nos são novas ou ao menos pouco familiares.

O autor escreve a partir de um sem-número de referências: gibis, videogames e, evidentemente, Hollywood. Mas, sob outro ângulo, fica bem claro que outra fonte de influência é a literatura africana, sobretudo a nigeriana. Obras como Forest of a Thousand Daemons, de Daniel Fagunwa, e The Palm-Wine Drinkard e My Life in the Bush of Ghosts, de Amos Tutuola, ambos escritores nigerianos do século XX e que foram fundamentais na formação literária de James.

Na obra também temos —  a exemplo de My Life in the Bush of Ghosts — o uso de sentenças pomposas, grandiloquentes, com uma estrutura frasal derivada do iorubá, mas tudo isso em uma estrutura narrativa fragmentada e não linear.

Ainda no início de My Life in the Bush of Ghosts, o protagonista é ameaçado de desmembramento por um fantasma que usa escorpiões vivos como anéis. Logo em seguida o fantasma o leva para sua casa, o obriga a beber urina, o transforma em cavalo, em vaca, e mais um sem-número de presepadas ocorre antes que de fato comece o plot principal do livro. Algo análogo ocorre em Leopardo negro, lobo vermelho: o protagonista encontra bruxas, gigantes e toda a sorte de obstáculos e absurdos antes que possa enfim avançar rumo ao seu objetivo principal.

Oralidade e narrativa

Leopardo negro, lobo vermelho começou a ser escrito por James durante o seu ano sabático da função de professor de literatura. Ao longo desse ano, ele preencheu dez cadernos com notas e estudos de personagens; ainda assim, lhe faltava um enredo claro e discernível. O plot e os subplots foram definidos a posteriori, o que talvez seja, aliás, uma explicação de ordem prática, e muito simples, a respeito da confusão narrativa na qual o leitor invariavelmente se encontrará.

É claro que a estrutura do romance de James não é convencional, se tomarmos por padrão  o modelo ocidental ao qual estamos acostumados. A confusão de vozes e de registros é, na maior parte do tempo, intencional, uma vez que mimetiza a oralidade da ficção de ascendência africana (uma crítica da NPR definiu Leopardo negro, lobo vermelho “como se Toni Morrison tivesse escrito Metamorfoses, de Ovídio”).

Algo importante e que devemos deixar claro é o fato de que o apelo do livro não é meramente sociológico ou extraliterário. Isto é, ele está sendo celebrado com frequência por seu inegável caráter, para usar um termo da moda, decolonial. No entanto, ainda que não seja falsa, essa é uma leitura apressada e preguiçosa de Leopardo negro, lobo vermelho. A graça principal do negócio é que se trata de um livro realmente muito bem escrito, além de muito divertido, o que não significa, veja bem, que se trata de uma obra leve, ou mesmo juvenil. Marlon James é um escritor dos grandes e, não resta dúvidas, veio para ficar.

 

>> Confira também o artigo Marlon James e a reinvenção do gênero de fantasia.

 

*Gabriel Trigueiro é doutor em História Comparada pela UFRJ. É ensaísta e escreve sobre política e cultura.


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