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Pilar Quintana: a força da concisão

19 / novembro / 2020

Convidada da Flip 2020, a premiada escritora colombiana investiga desejos e sentimentos obscuros em seu primeiro livro lançado no Brasil

Por Elisa Menezes*

 

A maternidade é um tema incontornável e central no breve romance A cachorra — a protagonista, Damaris, sempre desejou ter filhos. Ao chegar aos 40 anos, idade em que “as mulheres secam”, ela decide adotar uma cachorrinha e a batiza com o nome que daria à filha que nunca teve. A princípio, essa relação aplaca certas carências e preenche alguns vazios, mas com o tempo acaba trazendo à tona anseios obscuros, rancores e traumas acumulados ao longo de vários anos.

Ao contrário de sua personagem, a escritora colombiana Pilar Quintana passou a maior parte da vida convicta de que não queria ser mãe, mas acabou mudando de ideia e engravidando aos 40 anos. Enquanto amamentava o filho, escreveu no celular a história de Damaris, que recebeu em 2018 o prêmio Biblioteca de Narrativa Colombiana e atraiu as atenções do mundo. O romance teve seus direitos de publicação vendidos para dez países e é atualmente finalista do National Book Award, na categoria de literatura traduzida.

Se a maternidade é uma questão que salta aos olhos em A cachorra, existem outras mais sutis, dilemas que vão sendo revelados aos poucos. Damaris é uma mulher marginalizada. Pobre, negra e gorda. Seu cotidiano é marcado por uma série de violências físicas e psicológicas, acentuadas pela culpa que carrega desde a infância, fruto de uma suposta omissão. Ao contar a trajetória da protagonista, Pilar Quintana retrata o machismo, as desigualdades sociais, os conflitos de classe e a precariedade de uma região isolada: a costa do Pacífico colombiano. A escritora conviveu com essa natureza exuberante e impiedosa durante os nove anos em que morou no vilarejo de Juanchaco, que serviu de inspiração para o cenário de A cachorra. A impetuosidade da selva e do mar que engolem corpos é um dos traços mais marcantes do livro.

“O casebre em que moravam era de madeira e estava em mau estado. Quando caía uma tempestade, tremia com trovões e balançava com o vento, a água entrava pelas goteiras do teto e pelas frestas nas tábuas das paredes, tudo ficava frio e úmido, e a cadela punha-se a choramingar. Fazia muito tempo que Damaris e Rogelio dormiam em quartos separados, e nessas noites ela se levantava depressa, antes que ele pudesse dizer ou fazer algo. Tirava a cachorra da caixa e ficava com ela na escuridão, acarinhando-a, morta de susto por causa das explosões dos raios e da fúria do vendaval, sentindo-se diminuta, menor e menos importante no mundo do que um grão de areia do mar, até que a cachorra se aquietava.”

Investigar o lado sombrio, “o monstro” que vive dentro de nós e que é capaz de cometer atrocidades, é o que interessa a Pilar. Esse interesse — e a literatura derivada dele — já rendeu à autora o rótulo de “escritora de choque” e comparações com Charles Bukowski e Rubem Fonseca. Em 2007, ela foi selecionada pelo Hay Festival, no País de Gales, como um dos 39 escritores com até 39 anos de maior relevância da América Latina. Participou ainda de residências literárias em Iowa e em Hong Kong, onde sofreu censura. “Creio que os organizadores me convidaram sem me ler”, escreveu a Pilar em um ensaio em que descreve o episódio. 


Nascida em 1972 em Cali, ao sul de Bogotá, Pilar tem predileção por textos curtos. É autora de três novelas e um livro de contos e foi publicada em antologias e revistas literárias de diversos países. A cidade natal é onipresente em suas histórias, nas quais sexo e violência são temáticas frequentes. Em Coleccionistas de polvos raros (“Colecionadores de trepadas estranhas”, em tradução livre), a autora narra as aventuras de Flaca, uma mulher viciada em sexo que, no entanto, o pratica sem entusiasmo. Vencedor do prêmio espanhol La Mar de Letras, em 2010, o livro mostra o cartel de drogas de Cali em seu auge, no final dos anos 1980, e já desarticulado, no fim da década de 1990.

Em La caperucita se come al lobo (A chapeuzinho come o lobo), ela reúne contos de alto teor erótico, como o que dá nome ao livro e subverte o clássico infantil: uma jovem chapeuzinho deseja, seduz e leva para a cama “o lobo” do bairro. Em outro conto, “Violación”, um estupro é narrado do ponto de vista do padrasto molestador. A obra foi publicada em 2012 no Chile e ganhou as manchetes do mundo quando, em 2015, o Ministério da Educação chileno comprou por engano cerca de 300 exemplares para distribuir a bibliotecas de escolas primárias do país. Na ocasião, Pilar chamou a atenção para o fato de ninguém ter se escandalizado com a violência presente nos contos, apenas com o sexo. Em 2020, o livro finalmente foi publicado na Colômbia, com o acréscimo de três contos inéditos.

À primeira vista, A cachorra pode parecer um ponto fora da curva na obra de Pilar Quintana, por ser ambientado em uma região selvática e pobre da Colômbia e não ter o sexo como tema central. A autora discorda dessa percepção e afirma que o centro da trama continua sendo o desejo feminino, a “animalidade”. “Ambas são mulheres desejantes”, defende Pilar em entrevista ao jornal colombiano El Tiempo. “Damaris, a protagonista de A cachorra, deseja ser mãe e esse é um desejo absolutamente animal que governa sua vida. E acho que o mesmo ocorre nos contos de Caperucita, vemos mulheres desejantes, que não querem ter um filho, mas que têm desejos sexuais.”

Além de escritora, Pilar Quintana é roteirista premiada: recebeu o Premio del Fondo para el Desarrollo Cinematográfico pelo roteiro do filme Lavaperros — que estreia ainda em 2020 —, escrito em parceria com Antonio García Ángel. Ela também ministra oficinas de escrita criativa em instituições colombianas.

Pilar foi confirmada como uma das autoras convidadas da 18a edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que este ano será realizada de 3 a 6 de dezembro, de forma virtual, devido à pandemia de covid-19. Sua mesa, ainda sem data marcada, terá transmissão ao vivo e gratuita pela internet.

 

* Elisa Menezes é jornalista, editora e tradutora.

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