Mãos silenciadas — parte 4

Por Pedro Gabriel

6 / outubro / 2020

(((parte 4)))

Quando escrevo, eu me abocanho todo. Não me acanho. Mordo o dorso das mãos sem dó. Mordisco a parte da frente – bem onde ficam as linhas do meu destino. Mastigo todos os dias o meu próprio futuro, sem perceber. É um gesto automático. Meu corpo aceitou essa tarefa como sendo um processo orgânico. É como abrir as pálpebras logo pela manhã. É parecido com tomar um café após o almoço. É feito contabilizar ovelhas para tentar vencer a insônia. Já faz parte de mim. 

Sou assassino dessa minha sina? Arranquei — com unhas e dentes — toda e qualquer previsão sobre meu possível amanhã. E é melhor assim. Que graça teria iniciar novas histórias se soubéssemos o jeito que elas terminam? Eu nunca comecei um livro pelo ponto final. Sempre preferi seguir adiante sem contar com os encontros predestinados, as oportunidades pré-agendadas, as tramas já traçadas, os traumas devidamente roteirizados. A vida precisa dessa dose diária de desconhecido.

Tenho tatuagens produzidas pelos meus caninos; tinta-sangue. Crio marcas espalhadas pelo meu braço que impressionam os olhares alheios. Guardar rancor deixa visíveis sequelas. Só quem está na própria pele pode entender essas pequenas e rotineiras cicatrizes (meus silêncios?). São meus vulcões — convulsões de ideias não realizadas, de palavras não extravasadas. Aquelas que ficam atravessadas na garganta, sabe? Prontas para entrar em erupção a qualquer momento. 

Agora sou um Vesúvio em miniatura. 

(((continua na próxima semana)))

Pedro Gabriel nasceu em N’Djamena, capital do Chade, em 1984. Filho de pai suíço e mãe brasileira, chegou ao Brasil aos 12 anos — e até os 13 não formulava uma frase completa em português. A partir da dificuldade na adaptação à língua portuguesa, que lhe exigiu muita observação tanto dos sons quanto da grafia das palavras, Pedro desenvolveu talento e sensibilidade raros para brincar com as letras. É formado em publicidade e propaganda pela ESPM-RJ e autor de Eu me chamo Antônio Segundo – Eu me chamo Antônio e Ilustre Poesia.

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