Efeito pantufa

Por Pedro Gabriel

1 / setembro / 2020

O efeito pantufa é um fenômeno estilístico que ocorre principalmente no inverno e vem se tornando cada vez mais frequente nesse período de isolamento. Ele atinge pessoas de todas as classes sociais, de todos os níveis culturais. Não escolhe raça, cor, gênero ou religião. Pode ser visto nas principais metrópoles mundo afora e até nas regiões periféricas dos grandes centros urbanos. É inegável: a pantufa é o acessório do momento! (Pelo menos, porta adentro).

Não há dados científicos, mas pesquisas realizadas pela minha imaginação apontam que 9 entre 10 cidadãos já entregaram seus pés ao conforto das pantufas nesses últimos meses. Não há nenhuma comprovação acadêmica, mas alguns estudos recentes feitos pela minha bolha homem-hétero-branco-privilegiado-fora-bolsonaro indicam que 87% dos indivíduos que experimentaram essa possibilidade de calçar a fofura se tornaram menos rancorosos. E mais amáveis no contato. E mais afáveis no trato. Vestir pantufas é trazer o céu para o chão. Ao que parece, a sensação de andar nas nuvens atenua o amargor das palavras. Deveriam inventar pantufas para a língua. 

(((silêncio)))

Tem gente que coleciona pantufas com as mais diversas bizarrices (não julgo, apenas observo). Modelos com estampa de animais, frases de amor que nunca serão lidas, personagens de desenhos animados… Scooby Doo é hit! É legal, mas, sinceramente, me desanima um pouco. Eu sou mais sóbrio nesse quesito. Para não dizer que sou inflexível, tenho dois modelos. Um vermelho — mais descontraído — e um preto — mais elegante. 

O vermelho tem uma cruz branca na ponta, uma pequena homenagem à Suíça. Comprei nas minhas últimas férias por lá, em 2016. Desde então, quando visto este modelo, me sinto pisar novamente nos Alpes, sinto outra vez o sabor do Toblerone comprado pouco antes de embarcar de volta para o Brasil (às vezes, minha saudade é feita de chocolate, amêndoas e mel), sinto de novo a pontualidade de um relógio helvético. Com essas pantufas, é impossível chegar atrasado numa call no Zoom. Eu garanto! 

Elas só têm um defeito. Estão se desfazendo. Afinal, são quatro anos sustentando meu peso quase todos os dias. Pisei muito, muito mesmo. #PisaMenos, Pedro! Se elas pudessem falar, teriam me dito isso. Nem sei se ainda posso chamar de pantufa esse emaranhado de fiapos, essa fina camada de algodão que separa meu corpo do piso gelado da cozinha. Nas noites invernais de São Paulo, confesso que é difícil distinguir onde começa a sola do meu pé e onde termina o solado da pantufa.

O modelo preto é mais profissional, digamos assim. Foi confeccionado em material têxtil. Possui modelagem slipper, textura canelada, recorte em acabamento atanado e bico arredondado. É bem chique, aconchegante. Uma beleza! Deveria usar terno e gravata! Com essas pantufas, estou pronto para fechar qualquer negócio. Quando as coloco nos pés, me sinto um CEO do home office. Diretor executivo da procrastinação. Sou o cara que pensa em tudo, mas não executa nada. Alguém me contrata?

Pantufa é alívio. Em dias mais relax (quando não há obra no apartamento duplex ao lado, por exemplo), dá até para ouvir o pé menos tímido soltar um sonoro ufa! pela casa. Aqui dentro, tudo é conforto. Lá fora é que as coisas andam um tanto desconfortáveis. Né, mundo? 

Pedro Gabriel nasceu em N’Djamena, capital do Chade, em 1984. Filho de pai suíço e mãe brasileira, chegou ao Brasil aos 12 anos — e até os 13 não formulava uma frase completa em português. A partir da dificuldade na adaptação à língua portuguesa, que lhe exigiu muita observação tanto dos sons quanto da grafia das palavras, Pedro desenvolveu talento e sensibilidade raros para brincar com as letras. É formado em publicidade e propaganda pela ESPM-RJ e autor de Eu me chamo Antônio Segundo – Eu me chamo Antônio e Ilustre Poesia.

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