Alfredo Nugent Setubal

É possível criar personagens que sejam o oposto de seu criador?

27 / agosto / 2020

Todos nós temos trejeitos, preferências e idiossincrasias. E, naturalmente, tendemos a gostar mais de determinadas pessoas do que de outras. Pois é justamente esse um dos maiores desafios para mim, como escritor: como criar personagens com quem eu, a princípio, tenderia a não simpatizar? Em bom português: personagens de quem eu não seria amigo ou com cuja visão de mundo eu não concordo.

Não estou falando necessariamente de “vilões”, que em geral são criados para serem odiados, mas sim de um homem comum com traços machistas ou uma pessoa cujo posicionamento político é diferente do meu. Como dar a esses personagens a complexidade que merecem? É muito fácil cair na cilada de construí-los com ironia ou superficialidade, renegando-os a um papel desbotado na narrativa.

Foi isso que aconteceu comigo no processo de escrita de O livro de Líbero. Nos primeiros rascunhos, a personagem Dona Norma, mãe do protagonista, era bastante diferente do que viria a ser na versão final. Eu, que nasci e cresci em uma cidade grande, tinha a tendência de descrever a devoção de Norma pela religião e seu apego por Pausado (a minúscula cidade onde se passa o livro) com sarcasmo, como algo tacanho, ingênuo e atrasado. O resultado era uma personagem extremamente rasa, caricatural, sem a complexidade que faria jus à sua importância dentro da história.

Só percebi isso quando uma professora de escrita comentou que havia achado emocionante o amor de Dona Norma à sua terra e às miudezas da vida, mas que isso fora sufocado pelas “tintas pesadas” que eu usara para descrever seu traço religioso. Eu até então vira o apego de Dona Norma pela pequena cidade como medo ou covardia simplesmente, mas nunca como amor. Era essa a chave que faltava para compreender a mãe de Líbero e que eu, na pressa ou na indiferença diante do diferente, não percebera até aquele momento. Voltei, então, ao texto, tentando enxergar Dona Norma por esse novo prisma, mais generoso.

A palavra-chave aqui, a meu ver, é empatia, algo tão em falta nos dias de hoje. Colocar-se no lugar dos outros, tentar pensar como eles, ver o mundo através de seus olhos, suas dores, suas histórias. E é justamente essa a grande beleza dos livros, seja no ofício de escrevê-los ou no hábito de lê-los: o exercício da empatia, de enxergar os que pensam e agem diferente de nós para além dos rótulos e caricaturas. Em tempos tão polarizados quanto este em que vivemos, em que tendemos a “cancelar” aqueles de quem discordamos, esse é mais do que nunca um exercício importante rumo a uma tentativa de diálogo e compreensão.

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