Uma saudade proparoxítona

Por Pedro Gabriel

21 / julho / 2020

A saudade que me vem agora é das aulas de Português no Lycée Molière. Miguel, o professor, era o ctrl-c ctrl-v de Caetano Veloso. Mas não qualquer Caetano. A imagem que eu guardo é daquele tímido artista baiano do Festival de MPB organizado pela TV Record, em 1967. Magro, magro, magro. Camisa apertada. Jeans surrado. Uma elegância espontânea de quem preserva inteligência até nos ossos.

Foi Miguel quem me apresentou Construção, de Chico Buarque, ao explicar à classe o que são as proparoxítonas. Não sei se a turma se recorda desse dia. No fundo, acho que toda aula é um pouco particular. Cada aluno absorve o que bem entende desse encontro. Cada aluna observa o que pode se tornar útil no futuro. É impossível armazenar tudo o que nos é ensinado. Não é culpa do mestre, não é culpa do estudante, não é culpa da escola. É a vida. Cada um apreende do seu jeito o que aprende.

Lembro de forma muito nítida o brilho nos olhos de Caetano Veloso, oups, Miguel ao falar do arranjo que Rogério Duprat fez para a canção de Chico Buarque e de toda aquela riqueza de linguagem. Os sons que reproduzem o caos do trânsito, os versos terminados em proparoxítonas, a queda de um operário atrapalhando o sábado…

Eu não sabia quem era Duprat, quem era Chico. Eu não fazia ideia do que era a confusão do tráfego. Afinal, eu subia a pé a ladeira da Pereira da Silva até alcançar o portão do liceu. Eu desconhecia que uma proparoxítona era uma palavra que tem a antepenúltima sílaba como sílaba tônica. Muito menos eu poderia imaginar as consequências da queda de um operário… Sábado, bom, toda criança conhece mais ou menos o poder de um sábado. Dia sem dever de casa, dia sem aula no dia seguinte. Sábado é o verdadeiro domingo!

Miguel, essa saudade atravessou meu rosto com seu passo tímido e deixou meus olhos embotados de cimento e lágrima. Se me fosse permitido, tal qual um operário, eu reconstruiria a minha história nessas proparoxítonas.

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Pedro Gabriel nasceu em N’Djamena, capital do Chade, em 1984. Filho de pai suíço e mãe brasileira, chegou ao Brasil aos 12 anos — e até os 13 não formulava uma frase completa em português. A partir da dificuldade na adaptação à língua portuguesa, que lhe exigiu muita observação tanto dos sons quanto da grafia das palavras, Pedro desenvolveu talento e sensibilidade raros para brincar com as letras. É formado em publicidade e propaganda pela ESPM-RJ e autor de Eu me chamo Antônio Segundo – Eu me chamo Antônio e Ilustre Poesia.

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Comentários

Uma resposta para “Uma saudade proparoxítona

  1. Ameeeei essa crônica! Tanto quanto amo as proparoxítonas! ♡

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