Pedro Gabriel

Formas de preservar a ternura

23 / junho / 2020

São Paulo, segunda-feira, dez pras nove. Michele sai do quarto onde acabou de fazer sua aula ohmmmmmmmmline de yoga. Desculpe o trocadilho. Prometi parar com isso, mas enfim… Vida que cegue! Eita, mais um! Chega, chega, chega… 

Você já trocou a água do beija-flor?

Essas foram as primeiras palavras que escaparam da sua voz ainda adormecida nesta manhã nublada de junho. Meus ouvidos testemunharam a candura da cadência dessa sequência de sílabas. Sílabas, essas, que imagino terem formado um pequeno sol letrado na sua boca. Michele tem luz no que diz. 

Você já trocou a água do beija-flor? 

E essa sentença foi o bom-dia mais bonito de todos os bons-dias mais bonitos de todos os tempos. Depois desse dia, falar bom-dia ganhou um forte concorrente e perdeu um tanto a graça, enfraqueceu um tiquinho. Está decidido! Não falarei mais bom-dia! Agora direi: Você já trocou a água do beija-flor? para todas as pessoas que encontrar pelo caminho (quando eu puder voltar a pisar na rua, claro).

Prevejo um festival de você já trocou..

Você já trocou a água do beija-flor, Enrique? Meus cabelos – que já se confundem com minha barba e agora simulam um projeto de Chewbacca da Quarentena idealizado em um pequeno apartamento entre a Av. Moaci e a Alameda Miruna – sentem sua falta. Minha franja avantajada às vezes sonha com o senhor. Nos veremos em breve, eu espero. 

Você já trocou a água do beija-flor, Moça-que-vende-salada-de-frutas-perto-do-Shopping-Ibirapuera? Espero que o pote ainda esteja na faixa dos R$5. Uma coisa eu aprendi com ela: não se usa laranja nesse tipo de salada. As outras frutas azedam rapidamente, parece. Acho que ela teria muito a ensinar a certos políticos. 

Você já trocou a água do beija-flor, Seu Zé? Sonho com a tarde em que poderei saborear de novo o melhor PF de Moema. PF é prato feito na linguagem dos botecos. É sempre bom precisar certas siglas nesses tempos de busca e apreensão às 6h da manhã nas casas dos bacanas. O generoso contrafilé acompanhado de arroz, feijão e fritas é ponto alto da baixa gastronomia aqui do bairro. Eu contribuo com a economia local. Mais do que alguns ministérios por aí. Ah, Brasília e seus mistérios!

Saudade das coisas lá fora, né minha filha? Pois é… todos nós sentimos! Às vezes, a saudade é tamanha que me pego tendo saudade até de quem eu odeio um pouquinho. Em quem eu odeio muitão, eu nem penso: dispenso. Pensando bem, nem sei se odeio muito alguém. Será que devo me odiar por isso? Odiar é uma palavra muito forte, eu sei. Tão forte que enfraquece quem a sente, quem a pronuncia ou quem a escreve. Talvez não seja ódio meu sentimento, mas algo bem próximo ao seu significado. Um termo análogo que vive perambulando pelas redondezas no dicionário de sinônimos.

Estou um tanto farto do comportamento de algumas pessoas. Estou cansado dessa neutralidade que afundou de vez o país que ainda estava aprendendo a nadar. O Brasil agora é um gigante sem fôlego. É possível ver sua mão rompendo a superfície. Talvez seja essa a imagem da esperança. Mas, tá difícil, viu? Por quanto tempo nossa esperança ainda aguenta? Tô por aqui com essa galera que não respeita o confinamento, com essa gente que acha que está tudo indo no fluxo da mais perfeita normalidade. Aja naturalmente, vai passar e blábláblá… Basta!

Desculpa, eu não consigo perdoar essa irresponsabilidade social. Você consegue? Eu deveria fazer essa aula de yoga ohmmmmmmmmline? Simmmmmmmm, eu deveria. Eu deveria ser mais amoroso com essa situação? Não, não deveria. Ser amargo, em alguns casos, é o único jeito de preservar meu lado mais amado. Recomendo: Saramago, Ensaio sobre a cegueira. Hoje, Saramago não faria um ensaio, mas uma tetralogia sobre essa cegueira coletiva que se apossou dos olhos, da mente, do coração de toda essa turma. Onde foi parar nossa ternura? (quem souber, manda um direct). 

É preciso dar água ao beija-flor!

A voz de Michele, já desperta, agora me alcança feito uma pequena cobrança. Essa tarefa é sua, ela completa a oração. Essas palavras adoçam minha amargura (armadura?) de tal modo que o pensamento raivoso desaparece em mim.

Como tentativa de ajudar na minha organização, ela me dá dicas de como usar de forma produtiva todas as funções do Google Agenda. É lembrete. É cor. É aviso 30 minutos antes. É alarme faltando 5 minutos. Afinal, o beija-flor não pode ficar sem água. Sem mágoa, amiguinho. Sem mágoa. 

Sim, é uma tarefa simples. Os cuidados mais necessários são essencialmente simples. A gente é que sempre tenta dificultar o que sente.

Portanto, amados leitores, amadas leitoras, eis um spoilerzinho da minha agenda:

        Trocar a água do beija-flor, todos os dias antes das 9h;

Lembrete: Coloque 2 colheres de sopa rasas de açúcar para aproximadamente 100ml de água filtrada. A solução (água e açúcar) deve ser trocada diariamente e os bebedouros precisam ser higienizadas todos os diasCheck.

Michele tem luz no que diz. Mas isso eu já disse antes. Se o timbre da Michele fosse a voz do Waze, o mundo seguiria para um destino melhor. Acho que a ternura mora em algum lugar bem perto das suas cordas vocais. A gente deveria ouvi-la mais vezes. E jamais silenciá-la. 

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