Bastou fechar os olhos

Por Pedro Gabriel

9 / junho / 2020

Por descuido, escorreguei na minha cabeça e me vi perdido à beça. Não foi um tombo digno de compartilhar no stories, confesso. Para ser sincero, acho que acabou nem sendo uma queda daqueeelas que deixam sequelas, sabe? Bom, para falar a verdade, eu não cai…Pois é, pois é. Bastou fechar os olhos por alguns minutos e, pronto!, eu já estava em mim – nesse mundo mudo e íntimo.

Caos. Trânsito. Engarrafamento. Rush. Buzina. Bip-bip. Tudo parado. Exceto esse fluxo de palavras e imagens e sons. Lembro dos versos de um poeta mineiro, Stop! a vida parou ou foi um automóvel? Acho que São Paulo agora mora em mim. Pedro registra 217km de ideias enfileiradas e bate recorde de lentidão no ano! 

Ó eu aqui, ó! Tão só no meu sótão em relacionamento sério com os meus pensamentos incompletos. Ó eu aqui, ó! Dando voltas e mais voltas em meio a devaneios sem freios na vã ilusão de conseguir elã para alcançá-los. Ó eu aqui, ó! Arquitetando meus projetos inacabados. Eu queria erguer um poema, mas não encontrei forças para sustentar a estrutura, a viga, o cimento, a vida, o aço, o esquecimento, o erro e o ferro. #Desmoronei!

Me levanto. Abro a porta do armazém das coisas que nunca contei para ninguém. Vejo a despensa entupida de silêncios com prazo de validade (é possível um silêncio vencer?). Tudo guardado: o lápis que me desapontou pela primeira vez por não saber desenhar uma girafa, o relógio do meu avô que diz a hora exata em que ele parou de funcionar e me deixou (ele – meu avô, não o relógio), o esboço do que viria a ser um futuro guardanapo… Tudo guardado! Quantas palavras dispensadas por pura vaidade do artista!  Ah, o prazo de vaidade do artista! Eu me mando… 

 

– Já vai tarde! Grita uma lembrança amargurada.

 

Desço até a garagem. Me falta coragem para enfrentar o que me espera. Dizeres estacionados com placa, chassis, vidro fumê e multas por excesso de estagnação. Estacionadas, as memórias mais distantes tentam se mover para me aproximar do que passei a minha vida inteira tentando esquecer. É preciso externá-las, diz a voz interna (que sou eu). Externá-las seria exterminá-las? (pergunta a outra voz interna, que também sou eu). Lá fora, elas ainda serão minhas? (indaga a mesma voz, dessa vez um pouco mais ansiosa, mas não menos eu). Talvez aí resida a insegurança: esse medo gigante que é o pai de toda nossa ansiedade (respondo eu que sou eu mesmo). 

Algumas ideias convivem comigo há mais de 30 anos e ainda não me abandonaram. Conheço-as bem. Posso chamá-las de amigas? Esse amontoado de anotações confusas, informações desconexas, procrastinações em looping. Outras se recusam a me acompanhar, preferem ficar acampadas nesse território caótico da imaginação. Me acusam de plagiá-las. A gente não pertence aos autores, os autores é que nos pertencem. É o que elas dizem em cartazes, em notas de repúdio, em palavras de ordem, em abaixo-assinados. Aglomeradas, pedem que eu saia dali: de lá: delas. 

 

Posso chamá-las de amigas?

 

Foi bom estar por alguns instantes em mim. Mas preciso ir e eu me mando… Dessa vez não ouço mais aquele grito amargurado. Levo apenas a recordação das gavetas, das gaivotas, das notas e mais notas acumuladas há tempo. Atento, me despeço desse vai e vem de palavras, imagens, saudades. A ideia mais sensível ameaça chorar. Cabe a mim decidir se a lágrima se cairá feito eu nesse mundo mudo e íntimo.

Nos vemos lá fora. Agora é hora de aliviar as pálpebras. 

 Oi, mundo! Tudo em paz?

 (não precisa responder)

Pedro Gabriel nasceu em N’Djamena, capital do Chade, em 1984. Filho de pai suíço e mãe brasileira, chegou ao Brasil aos 12 anos — e até os 13 não formulava uma frase completa em português. A partir da dificuldade na adaptação à língua portuguesa, que lhe exigiu muita observação tanto dos sons quanto da grafia das palavras, Pedro desenvolveu talento e sensibilidade raros para brincar com as letras. É formado em publicidade e propaganda pela ESPM-RJ e autor de Eu me chamo Antônio Segundo – Eu me chamo Antônio e Ilustre Poesia.

VER TODAS AS COLUNAS

Comentários

Uma resposta para “Bastou fechar os olhos

  1. Pedro, que texto esplêndido! Obrigada por essas palavras jogadas ao vento, que certamente me arrancarão suspiros por todo o dia. Pretendo relê-las por puro prazer de respirar e buscar inspiração para a falta da rotina misturada ao caos. Já vou adquirir os seus livros para me debruçar ainda mais nos seus textos.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *