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Francis Ford Coppola e a juventude marginalizada de The Outsiders

30 / abril / 2020

Mural em homenagem ao filme, Floyd’s 99 Barbershop, Sherman Oaks, Califórnia

Revolucionário, icônico e adorado por uma legião de fãs, The Outsiders: Vidas sem rumo se tornou um clássico da literatura jovem e teve um papel muito importante na vida de vários leitores. Ao contar a história da gangue de Ponyboy Curtis, S. E. Hinton conseguiu criar uma narrativa atemporal, complexa e profunda sobre uma juventude marginalizada, que ecoa até os dias de hoje e conquista cada vez mais pessoas.

Essa história incrível está de volta às livrarias em uma edição de luxo com capa dura, pintura trilateral e ilustrações. Além disso, a obra conta também com uma carta da autora, uma seção dedicada aos bastidores do filme de Francis Ford Coppola e um prefácio de Ana Maria Bahiana, que você pode conferir com exclusividade a seguir:

 

Por Ana Maria Bahiana*

Em 1980, a última coisa que o cineasta Francis Ford Coppola planejava era fazer um filme motivado pela carta de uma bibliotecária. Sua produção mais recente, Apocalypse Now, tinha devorado cinco anos de sua vida e quase acabado com sua sanidade, seu casamento e suas finanças. As finanças, aliás, iam ficar muito piores, mas isso é outra história.

Nos primeiros meses de 1980, navegando nas águas de Apocalypse Now, recebido entusiasticamente pela crítica (apesar de algumas vaias no festival de Cannes de 1979, algo comum no festival) e fazendo sucesso na bilheteria, Coppola estava numa fase de expansão: sua produtora, Zoetrope Studios, agora tinha escritórios em São Francisco, Los Angeles e Nova York (o de LA, com estúdios, equipamentos e instalações de pós-produção de primeira linha).

Certo dia, por acaso, Coppola estava de passagem pelo escritório de Nova York, quando uma carta inusitada chegou às suas mãos. Estava endereçada, com grande cuidado e ótima caligrafia, especificamente a ele. Coppola não lia toda a sua correspondência, ainda mais nos escritórios de Los Angeles e São Francisco, sempre muito agitados. Já o de Nova York, mais calmo, recebia pouca correspondência — muito menos dirigida a ele.

Coppola abriu o farto envelope e deparou-se com um livro — uma edição de bolso de The Outsiders, de S. E. Hinton — e uma missiva curta, com 301 assinaturas: trezentas de alunos e uma de Jo Ellen Misakian, bibliotecária de uma escola da cidade de Fresno, no interior da Califórnia.

O texto ia direto ao ponto: The Outsiders, livro de S. E. Hinton publicado pela primeira vez em 1967, era, nas palavras de Misakian, a “leitura favorita” dos alunos dos sétimo e oitavo anos da escola. E todos eles, tendo assinado a carta, achavam que seria maravilhoso ver o livro ser transformado em filme.

“Eu não escolhi Coppola à toa”, diria Misakian em 2018, já aposentada, à revista Variety. “Eu tinha visto e gostado muito de O Corcel Negro, de 1979. Tínhamos até exibido o filme na escola, depois que os alunos leram o livro. Fiquei impressionada ao saber que Coppola tinha produzido o filme. A história era muito bem contada.”

Preocupada em incentivar o gosto dos alunos pela leitura — “era muito difícil fazer a garotada criar o hábito de ler” —, Misakian fez uma pesquisa para descobrir o livro mais querido na escola, e The Outsiders ganhou com ampla margem. Na sequência, ela lançou outra pesquisa: qual livro os alunos queriam que fosse adaptado para o cinema?

E assim surgiu a carta que Coppola leu, surpreso e deliciado, naquele dia em Nova York (em Nova York porque, diz Misakian, “era o único endereço que tínhamos nos registros da Biblioteca Central de Fresno”).

Coppola ficou intrigado e enviou seu braço direito, Fred Roos, produtor de praticamente todos os seus filmes desde 1964, para, nas palavras dele, “investigar as possibilidades”.

Dali nasceu mais que uma possibilidade – uma parceria. Coppola se encantou com o livro e, acima de tudo, com Hinton. Muitos anos depois, em 2005, quando ele reeditava o filme, adicionando cenas anteriormente cortadas, para uma nova edição especial em DVDCoppola diria: “Eu jamais pensaria em fazer um filme juvenil se não tivesse recebido a carta e o livro. E se não tivesse encontrado Susan (o “S” de S. E. Hinton) e trabalhado com ela durante tanto tempo.”

É difícil imaginar um ponto em comum entre Coppola e Hinton; e, no entanto, foi nesse encontro que se firmou uma amizade que dura até hoje e da qual nasceu um subgênero do cinema: o filme brat pack, estrelado por um grupo de atores jovens, que seria uma das forças culturais (e financeiras) dos anos 1980 e do começo de 1990.

Hinton, nascida e criada em Tulsa, Oklahoma, uma cidade que já vira diversos embates sociais e raciais, escreveu o livro quando tinha quinze anos porque “não era possível não escrevê-lo”. The Outsiders foi seu terceiro livro, o primeiro a ser publicado. Os dois anteriores, ela contou numa entrevista de 2005, “não eram lá muito bons. O primeiro era sobre a Guerra Civil. O segundo, sobre um grupo de jovens num rancho de criação de cavalos. Esse era um pouco melhor”.

The Outsiders, conta ela, nasceu da sua indignação com a tensão social em sua escola. Hinton vinha de uma família pobre, como os Greasers de seu livro. Quando foi colocada numa classe mais adiantada e dominada por alunos de classe média alta, os Socs, ela descobriu “outra realidade”. Quando um amigo levou uma surra de um Soc, diz ela, “eu cheguei em casa e comecei a escrever”.

Essa urgência, essa transparência, a força natural dessa narrativa, estabeleceu uma conexão visceral com um público que, com raríssimas exceções, não tinha livros escritos para ele. Algo que Jo Ellen Misakian notou com clareza forte o bastante para mandar uma carta para um cineasta famoso que ela jamais tinha visto. “Temos que lutar para propor outros livros para nossos estudantes”, diz ela na carta. “Menos The Outsiders. Esse já pertence a eles.”

Assim que terminaram as filmagens de O Fundo do Coração (que, ele ainda não sabia, seria o filme que levaria a Zoetrope à falência e interromperia sua carreira como produtor), Coppola deu início ao que seria, na verdade, uma dupla de filmes, The Outsiders — que no Brasil ganhou o título Vidas sem rumo — e O Selvagem da Motocicleta. O diretor trouxe Hinton para o set (ela faz uma ponta como enfermeira em uma cena) e trabalhou com ela na versão final do roteiro, ao mesmo tempo que escrevia o que viria a se tornar o filme O Selvagem da Motocicleta, adaptando outra história de juventude marginalizada.

Apesar de um nome de peso como Coppola, de um livro cultuado pelo público e de um elenco que, dois anos depois, seria impossível de custear — Patrick Swayze, Tom Cruise, Rob Lowe, Diane Lane, Ralph Macchio, Emilio Estevez e Matt Dillon —, a adaptação de The Outsiders não foi um sucesso, nem de crítica nem de bilheteria. Mas, ao longo do tempo, o filme seguiu os passos do livro que o inspirara: tornou-se um personagem da vida de várias gerações, passando pelas iniciações da adolescência. E ficou como uma referência, um pouco espelho, um pouco agente provocador, um pouco a pepita de ouro escondida numa história sobre a fragilidade do tempo e da juventude.

 

*Ana Maria Bahiana é jornalista, escritora, pesquisadora, produtora e tem uma longa e prestigiosa carreira na área de cultura no Brasil e no exterior. Mora em Los Angeles há duas décadas, é membro da associação responsável pelo Globo de Ouro e já entrevistou nomes como Kathryn Bigelow e Francis Ford Coppola.


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