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O movimento que impulsionou uma nova onda de mulheres destemidas

20 / dezembro / 2019

*por Marina Vargas

Vocês podem ter voz, mas não serão ouvidas. Podem trabalhar, mas não serão levadas a sério. Podem ter a aparência que quiserem, mas não serão respeitadas. Podem denunciar, mas não vamos acreditar no que dizem. Sujeitos delimitados pelo patriarcado, cidadãs de segunda classe, as mulheres conquistaram direitos, mas o movimento para exercê-los plenamente em um mundo forjado por e para homens precisa ser obstinado e incessante. Especialmente no ambiente de trabalho. Homens podem não se comprometer, mulheres não podem hesitar.

É nesse ambiente pontuado de opressões, e muitas vezes ameaças, que transitam as quatro personagens centrais de Rede de sussurros: as advogadas Sloane, Ardie e Grace e a faxineira Rosalita. Na empresa de artigos esportivos Truviv Inc., elas, e todas as outras mulheres, não são apenas colegas de trabalho, são companheiras de guerra. E o maior inimigo delas está perfeitamente representado na figura do executivo Ames Garret: ele chantageia, manipula, intimida e tem um histórico de assédio e comportamento impróprio com funcionárias da empresa. Conduta amplamente conhecida, mas acobertada. No entanto, quando Ames está prestes a ser promovido a presidente da Truviv e começa a assediar uma advogada recém-contratada, as mulheres decidem tomar uma atitude. E a decisão de Sloane de incluir o nome dele na planilha anônima sobre homens canalhas acaba fazendo com que a situação saia do controle, em uma trama que vai envolver uma morte suspeita, acusações, demissões e segredos revelados.

Ao acompanhar esses desdobramentos, descobrimos como os caminhos de todas as quatro mulheres já cruzaram com o de Ames. Na forma de um caso extraconjugal, de episódios de constrangimento ou violência sexual, ou de uma promessa de ajuda na carreira em troca de favores, todas foram exploradas em momentos de vulnerabilidade vivenciados com frequência por mulheres no ambiente de trabalho, onde os obstáculos, a bem da verdade, vão muito além do assédio. De acordo com estudo da consultoria Robert Half publicado em 2018, no Brasil, 27% das mulheres têm dificuldade de reassumir as antigas atividades quando voltam da licença-maternidade. É ainda mais alarmante o resultado de pesquisa da Fundação Getulio Vargas (FGV), feita com 247 mil mulheres de 25 a 35 anos, que mostrou que metade das que se tornaram mães perdeu o emprego até dois anos depois da licença-maternidade. No livro, um caso emblemático é o de Grace, que luta contra a depressão pós-parto e enfrenta dificuldades ao retomar o trabalho depois do nascimento da filha.

O livro de Chandler Baker foi escrito na esteira da explosão do movimento #MeToo, quando o assédio sexual emergiu como uma das principais pautas de uma geração de mulheres que inaugurou o ativismo digital, lançando mão das redes sociais para disseminar a luta feminista e se rebelar contra violências diárias por meio de hashtags. A expressão “Me too”, no entanto, antecede esse movimento: começou a ser usada em 2006, pela ativista Tarana Burke, na rede social MySpace. Mas foi apenas em 2017, depois da publicação, no New York Times, de uma reportagem das jornalistas Jodi Kantor e Megan Twohey sobre as alegações contra o produtor de cinema Harvey Weinstein, que ela explodiu nas redes. Em seguida à reportagem, a atriz americana Alyssa Milano sugeriu, no Twitter, que as pessoas que já tinham sofrido assédio ou abuso sexual compartilhassem a hashtag #MeToo.

A hashtag foi criada por Milano por volta do meio-dia de 15 de outubro de 2017 e, no fim do dia, já tinha sido usada mais de 200 mil vezes, número que mais do que dobrou no dia seguinte. No Facebook, a hashtag foi usada por mais de 4,7 milhões de pessoas naquelas primeiras 24 horas, e entrou na lista de trending topics em mais de 85 países, dando início a uma grande discussão sobre o assédio e o abuso sexual no ambiente de trabalho, do qual 34% das mulheres brasileiras já foram vítimas. Apesar disso, apenas 16% das que afirmaram terem sido pressionadas a realizar atos sexuais denunciaram o caso. A maioria se cala por medo de retaliações e de perder o emprego: essas são as razões apresentadas por 71% das vítimas que deixam de se manifestar formalmente. O que é compreensível quando se leva em conta que os chefes diretos representam 51,3% dos agressores.

Depois do #MeToo, diversas listas de redes de sussurros foram vazadas para o público, e a ampla cobertura da mídia levou a uma onda de acusações contra figuras do alto escalão das indústrias do cinema, do entretenimento, da música e do esporte, se desdobrando também para os setores da política, da tecnologia e da ciência. Desde 2017, 263 empresários, políticos e celebridades foram acusados de algum tipo de conduta sexual inadequada, de acordo com o site Vox, entre eles os atores Kevin Spacey, Bill Cosby, Morgan Freeman, James Franco, Dustin Hoffman, o comediante Louis C.K., o jogador de futebol Cristiano Ronaldo, o tenor Placido Domingo, o juiz da Suprema Corte americana Brett Kavanaugh e até o presidente americano Donald Trump.

Harvey Weinstein se declarou inocente e aguarda julgamento, mas no caso da maioria acusados houve poucos desdobramentos além da exposição pública. Os casos contra Kevin Spacey foram arquivados, a carreira de Cristiano Ronaldo segue a pleno vapor, Louis C.K. está de volta ao circuito de comédia, Kavanaugh está presidindo a Suprema Corte americana e Donald Trump continua governando os Estados Unidos. Só Bill Cosby está cumprindo sentença em uma prisão de segurança máxima.

Dois anos depois do tuíte de Alyssa Milano, os resultados duradouros do #MeToo permanecem incertos. Embora em alguns ambientes de trabalho tenha havido movimentos para coibir e punir o assédio moral e sexual, ainda não está claro quando serão implementadas mudanças mais concretas, tanto no âmbito comportamental quanto no âmbito legal. Enquanto isso, a exposição de quem denuncia os abusos permanece, assim como os efeitos devastadores para as vítimas, que incluem estresse pós-traumático, perda de autoestima, ansiedade, depressão e até mesmo suicídio. De acordo com dados compilados pelo Equal Rights Advocates, nos Estados Unidos, de 90% a 95% das mulheres vítimas de assédio sexual no ambiente de trabalho sofrem alguma consequência debilitante. As mulheres enfrentam ainda o medo de ser desacreditadas e, no processo, sofrer constrangimentos e humilhações, além de se expor a retaliações. Tudo isso apesar de as falsas acusações de assédio sexual serem raras: representam entre 2% e 10% do número total de acusações formais.

O cenário pode não parecer muito promissor, e provavelmente estamos apenas no início de uma longa luta para promover mudanças culturais profundas, mas um diálogo importante foi aberto. E a união das mulheres, assim como a das personagens Ardie, Grace, Sloane e Rosalita, mostra que mesmo que talvez seja tarde para reparar os danos a muitas das vítimas, nunca é tarde para expor a verdade. Sentindo que não estão mais sozinhas, elas rompem o silêncio e começam a compartilhar casos de abuso; a sociedade, pelo menos na esfera pública, começa a atribuir a responsabilidade ao assediador, não mais às vítimas. E quem sabe o capítulo final dessa história, de todas essas histórias, nos mostre que as mulheres se cansaram de sussurrar e descobriram que não apenas têm voz, mas que, unidas, podem falar alto. E se fazer ouvir.

 

*Marina Vargas é formada em Produção Editorial pela UFRJ. Trabalhou em editora durante muitos anos, a maioria deles no selo Civilização Brasileira, do Grupo Editorial Record, mas nos últimos tempos descobriu que o que gosta mesmo de fazer é traduzir.

 

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