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Tornar-se artista

17 / maio / 2019

Foto Letrux: Sillas Henrique

No romance Tempo de luz, Whitney Scharer ficcionaliza a história real de Lee Miller, uma das artistas mais interessantes da geração de modernistas que viveu em Paris nos anos 1930. O livro acompanha a trajetória de Lee desde quando era modelo da Vogue americana, passando pelo turbulento relacionamento com o artista surrealista Man Ray, até se tornar uma artista visual e fotógrafa.

A cantora e compositora Letícia Novaes – a Letrux – divide suas experiências em um texto pessoal e emocionante, inspirado no angustiante processo de transformação e entendimento do que é tornar-se artista pelo qual Lee Miller passa ao longo do livro. Confira:

Tornar-se artista

Por Letrux*

Foto: Antonio Brasiliano

“Letícia é maluquinha” era uma frase constante na infância. Só sabia ser daquele jeito e cedo entendi que ser espontânea significava ser uma “figura”. Com 13 anos já tinha um metro e oitenta, e ser figura se expandiu como minha altura. Percebendo isso, a professora de artes me convidou para fazer seu curso de teatro, fora do colégio. Me senti adulta. Uma figura adulta. Marina, minha única prima mais velha, minha musa (tão à frente de seu tempo que nem pertence mais a esse plano terrestre), me viu numa das peças que fizemos. Ao final, disse: “Você vai fazer isso pro resto da vida.” Não sabia que podia. Mãe professora de francês, pai bancário. Lá em casa nunca faltaram instrumentos musicais e festas. Domingo era dia de Bethânia no almoço, Raça Negra à tarde, Barry White à noite e talvez “Bolero” de Ravel antes de dormir. Mas ser artista era outra história.

Sou ansiosa, mas não tenho pressa. Arrisco uma explicação: tenho urgência de que a vida não seja em vão, mas não tenho pressa de que as coisas aconteçam. E aí entra toda uma formação espiritual e mística que devo a meu pai e principalmente a minha mãe. Eu contemplava artistas no cinema (pirava com Harry & Sally e Os Incompreendidos), na literatura (delirava com Pessoa, Drummond, mas já sentia arrepios que confirmavam que Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath sacudiriam minha cabeça sem volta), no teatro (ficava maravilhada vendo Marieta Severo em A dona da história e achava que iria morrer com Mariana Lima fazendo Tchekhov em A gaivota). A arte já me emocionava muito mas nada d’eu dizer “é isso então”.

Sentia e escrevia muito, mas não sabia que aquilo era um embrião da artista que eu viria a ser. Minha mãe me dava diários e eu oscilava da Turma da Mônica para “Meu querido diário” em minutos. Essa prática de escrever todo dia foi muito importante. Não era pra ninguém (tinha até cadeado!), era pra mim mesma. Me entendo muito mais escrevendo do que falando, queria até fazer análise por escrito. “Uma figura.” Risos. Entrei na faculdade de Letras, mas achava que seria um clima Sociedade dos Poetas Mortos. Ledo engano. Percebendo minha tristeza, minha mãe me matriculou no teatro, sensível que só. Durante o teatro, inventei de pegar o violão e entender seu corpo e seu funcionamento. O mundo dos diários foi ganhando som e melodia. Simples, quatro acordes, rimas pobres, aquela coisa. Mas era uma maneira de sentir e de transformar. Dor, paixão, sono, tédio, graça, era todo o caldeirão de emoções que qualquer jovem sente, e eu ali, não me cabendo e sentindo aquela onda ancestral de abrir a boca e emitir som. Inventar letras com melodia, que terapia. Então pode? Não parei. Transformava tudo. Sentava com o violão e os diários e me resolvia. Montei banda, fiz showzinhos. Tomei gosto. Com 25, conheci Lucas, um profissional da música, enquanto eu era só uma especuladora de sensações. Nos apaixonamos e durante anos fizemos um bocado de canções lindas, com a banda Letuce. Geralmente eu chegava com as letras e ele me oferecia a música, mas era o famoso processo “não sei onde começa um e termina o outro”, tamanha a fusão. Foi uma fase muito rica de criatividade. Com pausas para lavar a louça, mas, sem dúvida, que fertilidade musical. Não é fácil viver e trabalhar com a pessoa amada. A fusão pode ser fatal. Em algum momento quisemos seguir sozinhos. Muitos risos e choros depois, estou prestes a completar 37 voltas ao sol, viajando o Brasil inteiro e me apresentando com meu primeiro disco “solo”: Letrux em Noite de Climão. Me emociona saber que minha emoção emociona as pessoas. Roda da fortuna curiosa, essa. “Obrigada por entender os símbolos e passar para a gente” é uma frase que os fãs me dizem. Acho que só sei ser artista assim: figura mesmo.

 

Letrux é a Letícia Novaes pós-Letuce. Atriz, escritora, cantora, compositora e instrumentista. Fênix Tijucana. Caçula e estabanada. @leticialetrux  


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