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As mentiras que contamos para sobreviver

24 / abril / 2019

Confira a entrevista com Michelle Sacks, autora de Você nasceu para isso.

Por João Lourenço*

Shakespeare já disse lá no século XVI: “O mundo inteiro é um palco. E todos os homens e mulheres não passam de meros atores. Eles entram e saem de cena, e cada um no seu tempo representa diversos papéis.”

Em tempos de redes sociais, nós, os atores, viramos avatares belos e felizes, representando papéis que não permitem demonstração de fraqueza e vulnerabilidade. Essa pressão por uma vida perfeita (ainda que de mentira) gera ansiedade, estresse, distúrbios emocionais… Afinal, quem aguenta ser feliz o tempo todo?

O romance de estreia de Michelle Sacks aborda exatamente essas questões. Em Você nasceu para isso, os personagens vivem uma felicidade difícil de sustentar. “Interpretamos papéis, seja de esposa, marido, amigo. Esse tipo de performance está ligado à ideia de felicidade. Muitas vezes interpretamos papéis de pessoas felizes, e o resultado disso pode ser devastador”, acredita a autora. 

Você nasceu para isso acompanha a crise de identidade de um jovem casal americano. Após um escândalo, eles deixam Nova York e se mudam para uma casa modesta no interior da Suécia. Nesse novo ambiente, Sam e Merry se esforçam para ser a família perfeita. Merry procura ser tudo que o marido espera que ela seja e assume o papel de esposa-modelo. Cuida do bebê, da casa, do jardim e das refeições da família. Sam é o “homem alfa”, forte e orgulhoso. A performance de família feliz é abalada quando eles recebem a visita de Frank, a melhor amiga de Merry. Segredos são revelados, e, quando as máscaras caem, a verdade se impõe.

O livro é narrado em três perspectivas diferentes. Os diálogos não são marcados por aspas ou travessões. E a autora cria mecanismos que permitem ao leitor entrar na consciência de cada um dos personagens. A ideia para o romance surgiu quando Michelle estava de férias em um chalé na Suécia. Ali, tudo parecia “perfeito demais”, e ela começou a refletir sobre o que poderia existir por baixo daquela superfície tranquila. A autora acredita que um dos maiores problemas em nossa vida é a ilusão. “Precisamos contar histórias para sobreviver. Histórias que nos ajudam a enfrentar as dificuldades do presente. Essa negação da verdade é responsável por nos colocar em apuros o tempo todo.”

Michelle Sacks conversou com a Intrínseca por telefone. Confira:

 

Intrínseca: As personagens de Você nasceu para isso são pessoas difíceis e, ao mesmo tempo, geram empatia. Como foi o processo de escrever um livro marcado por sentimentos conflitantes?

Michelle Sacks: O livro me causou um esgotamento emocional. Meu humor oscilou bastante. Durante o processo, percebi que me transformei também em uma pessoa difícil de conviver. Fiz uma pesquisa sobre trauma e li vários relatos horríveis. Foi um livro difícil de escrever, os personagens carregam bastante bagagem emocional. Apesar de se tratar de personagens fictícios, no limite do comportamento humano, em alguns momentos cheguei a acreditar que aquelas pessoas fossem reais. 

 

I: A protagonista está presa em uma espécie de “tirania da felicidade”. Ela vive uma performance difícil de sustentar. Essa questão identitária também afeta os outros personagens. Comente um pouco sobre isso. 

MS: Ela quer ser a pessoa que todo mundo espera que ela seja. Merry é uma tela em branco, pois não confia muito em si mesma. Ela passou muito tempo flutuando pela vida, esperando alguém dizer quem ela era. Quando casa, assume a personalidade imposta pelo marido: a dona de casa e mãe perfeita. Em geral, ainda vivemos em uma sociedade que desconfia da mulher solteira e sem filhos. Esses rótulos trazem vergonha para a mulher. Muitas passam a acreditar que nunca serão felizes sem filhos e solteiras.

 

As redes sociais tornaram esse fenômeno ainda pior. Nossas vidas são editadas ao extremo.

Um dos maiores problemas que vivemos é a ilusão. Os seres humanos são propensos ao delírio. Muito disso tem a ver com nossa ferramenta evolutiva de sobrevivência. Precisamos contar histórias para sobreviver, precisamos contar histórias para acreditar que as coisas vão ficar bem no futuro. Essas histórias nos ajudam a enfrentar as dificuldades do presente. Somos bons em não ver o que está diante de nós, então inventamos desculpas para sustentar nossas narrativas. Essa negação da verdade é responsável por nos colocar em apuros o tempo todo. 

 

 

I: Além de rigoroso, o inverno na Suécia é marcado por dias curtos. Há vários estudos que afirmam que esse tipo de clima pode enlouquecer uma pessoa. Você explorou esse fenômeno no livro. Fale um pouco sobre isso. 

MS: Essas mudanças no clima afetam nossa personalidade. Pessoas em climas tropicais, como vocês no Brasil, costumam ser mais amigáveis. Pense o contrário. O lugar do livro tem um inverno difícil, que força as pessoas a se isolarem. Essa ideia de alienação, de pessoas exiladas, longe de casa, foi algo que me guiou. Queria explorar a ideia de ser uma pessoa em um lugar que não é o seu.

 

I: O livro foi escrito na mesma época em que você pensava em ser mãe. Como essa experiência se refletiu na narrativa? 

MS: Não foi algo consciente, mas hoje percebo que explorei meus maiores medos sobre a maternidade usando as vozes dos meus personagens. Fiquei presa nesse loop infinito entre ser ou não mãe. Coloquei todas as dúvidas na mesa: a questão emocional, racional, biológica, tudo que uma criança pode vir a representar. Cheguei a ler um livro de um psicólogo francês sobre mães que se arrependeram da maternidade. Essas questões delicadas encontraram espaço no livro. 

 

I: Hoje costuma-se discutir bastante sobre o lugar de fala do autor. Você escreveu sobre maternidade, mas ainda não teve filhos. De alguma forma você se sentiu julgada por abordar esse assunto?

MS: Até o final do livro cheguei à conclusão de que gostaria de ter filhos, mas tive alguns problemas de saúde que atrasaram um pouco as coisas. Agora, estou no estágio de aceitar que talvez isso não aconteça da forma que imaginei. Não me sinto julgada por não ter filhos e escrever sobre maternidade. Na verdade, recebi comentários positivos de mães de todas as idades. Elas se sentiram representadas nas questões de isolamento e de tédio que abordo no livro. 

 

I: As relações entre as personagens são carregadas de segundas intenções. Há um clima enorme de competição entre elas, muitas vezes uma competição destrutiva. Toda relação humana é acompanhada de competição? 

MS: Tenho fascínio por assuntos como a biologia evolutiva. Muitos assuntos que discutimos hoje têm a ver com isso. Competição não é ideal para nenhum tipo de relacionamento, incluindo a amizade. Porém, não podemos ignorar que a natureza do ser humano é bastante competitiva. Temos essa necessidade de preservar nossos recursos, que podem variar de status social a até mesmo a água de um poço. Como amigos, como parceiros ou como nós mesmos, progredimos melhor quando eliminamos o espírito competitivo.

 

I: Merry e Frank são amigas de infância. Apesar de ser uma relação tóxica, elas insistem em manter essa amizade. Você se encontrou em uma situação parecida? 

MS: Já estive em uma amizade em que não me sentia bem. Tinha a sensação de que estava sendo enganada, de que eu era uma pessoa descartável. Muitas vezes sabemos o que é bom para a gente, mas a gente vive em uma bolha de ilusão. Não sei se o mesmo acontece entre homens, mas a amizade feminina é bastante curiosa. As mulheres podem ser muito amorosas entre si, mas, ao mesmo tempo, elas podem manipular e fazer jogos emocionais.

 

Nós, mulheres, temos dificuldades em encerrar uma amizade. Muitas vezes as pessoas simplesmente mudam, estão em fases diferentes da vida. Nada de ruim precisa acontecer para acabar uma amizade. Ou seja, acho que é saudável deixar algumas pessoas no passado em vez de continuar insistindo em uma conexão que não existe. 

 

I: Você voltou à Suécia para passar três meses no mesmo lugar que a inspirou a escrever o livro. Quais as melhores características do país? 

Em geral, as pessoas parecem viver muito bem. Você não encontra pessoas estressadas. Do motorista de ônibus até a caixa do supermercado, todos trabalham felizes, têm uma vida decente. Isso tem muito a ver com as políticas sociais do país. Eles parecem ter compreendido a real importância da vida. Também admiro como eles se preocupam com a natureza e com a igualdade de gênero. Há um clima de esperança no ar e isso me surpreende, ainda mais quando você vem de um país caótico como a África do Sul. 

 

*João Lourenço é jornalista. Passou pela redação da FFWMAG, colaborou com a Harper’s Bazaar e com a ABD Conceitual, entre outras publicações estrangeiras de moda e design. Atualmente está em Nova York escrevendo seu primeiro romance.


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