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Os deuses nos roubaram Hawking

16 / março / 2018

Por Amâncio Friaça*

 

A morte de Stephen Hawking produziu uma grande comoção no mundo todo. Várias pessoas se apressaram a apontar as coincidências entre a data do seu nascimento (8 de janeiro de 1942) e os 300 anos exatos da morte de Galileu; e da sua morte (14 de março de 2018) e a data de nascimento de Einstein. Outros paralelos já haviam sido traçados anteriormente como aquele entre o ano da morte de Galileu, 1642, e o do nascimento de Newton. Pode-se pensar em uma linha sucessória ao longo de séculos conectando Galileu, Newton, Einstein e Hawking. Assim, em 1979, Hawking assume a Cátedra Lucasiana de Matemática da Universidade de Cambridge, cujo segundo ocupante havia sido Newton.

Essa “linha sucessória” também se refere à popularidade. Em virtude de sua doença, associada à imagem da cadeira de rodas, e de seu poderoso empreendimento de divulgação científica — inaugurado com o best-seller Uma breve história do tempo, de 1988 —, Hawking tornou-se o maior popstar da ciência desde Einstein. Mas Newton já se enquadrava na categoria de celebridade científica. Voltaire estava presente no funeral de Newton em 1727 e ficou profundamente impressionado com o fato de um cientista ser enterrado na Abadia de Westminster, como um rei, algo impensável na França. A cerimônia com regalias reais para um físico foi algo sem precedentes, um sinal de que a ciência tinha impactos diretos na sociedade — algo nunca antes imaginado.

Pouco depois de seu aniversário de 21 anos, Hawking foi diagnosticado como portador de uma doença degenerativa fatal, a esclerose lateral amiotrófica (ELA). Mas, em vez de sucumbir à depressão, ele se voltou para algumas das questões mais fundamentais sobre a natureza do universo, uma tarefa que descreveu claramente: “Meu objetivo é simples. É uma compreensão completa do universo, por que ele é como é e por que ele existe afinal”. Com determinação titânica, desafiando a opinião dos médicos, Hawking conseguiu viver por mais 55 anos.  Porém, há mais do que isso. Tão logo soube da doença, Hawking apressou-se em ter três filhos com a primeira mulher, Jane. Com um enorme carinho pelo pai, eles recordaram o que Hawking dizia: “Um universo não seria muita coisa se não fosse o lar das pessoas que amamos.”

Após concluir a graduação em física na Universidade de Oxford, em 1962, Hawking deu início ao doutorado na Universidade de Cambridge, sob a orientação de Dennis Sciama, um dos fundadores da cosmologia moderna. Foi exatamente nesse período que descobriu a doença e se casou com Jane. Foi também quando conheceu o matemático Roger Penrose, com quem desenvolveu uma fecunda e duradoura parceria. Em 1964, estabeleceram um teorema matemático demonstrando que o colapso de uma estrela de grande massa produziria uma singularidade (uma região onde a densidade e a curvatura do espaço-tempo se tornariam infinitas), ou seja, um “buraco negro”. Ao longo da década de 1960, os dois estabeleceram importantes teoremas sobre buracos negros. Todo o trabalho nessa área resultou em um artigo fundamental publicado em 1970, onde Hawking e Penrose aplicaram a matemática dos buracos negros ao universo, mostrando que uma singularidade era uma implicação necessária da relatividade geral de Einstein para o passado remoto do Universo, resultando naturalmente em um Big Bang.

Tempos depois, Hawking faz uma das mais extraordinárias descobertas de todos os tempos: os buracos negros não são inteiramente negros porque algo escapa deles, uma emissão de energia que posteriormente passou a ser conhecida com a “radiação de Hawking”. Em 1974, demonstrou que no horizonte de um buraco negro são produzidos pares de partículas e antipartículas. Esse mecanismo provém de uma previsão da mecânica quântica, de que o vácuo apresenta estados microscópicos que se manifestam como partículas virtuais. Além de criar essa conexão com a mecânica quântica, Hawking agregou nesse processo a termodinâmica, que é a ciência do calor. Se os buracos negros possuem uma emissão, eles irradiam calor e isso mostra sua relação com uma quantidade termodinâmica fundamental, a entropia, que é a medida do grau de desordenamento de um sistema. Em termodinâmica, a entropia do universo cresce irreversivelmente. De um modo absolutamente genial, ele relacionou um elemento geométrico do buraco negro, a área do horizonte A, com a entropia do buraco negro, uma identificação resumida na “fórmula de Hawking”:

 

S=πAkc3/2h

 

Essa expressão mostra que há uma conexão profunda e inesperada entre as três teorias fundadoras da física: a Teoria da Relatividade Geral (através das constantes G, a constante gravitacional de Newton, e c, a velocidade da luz), a Mecânica Quântica (através de h, a constante de Planck) e a Termodinâmica (através de S, a entropia, e k, a constante de Boltzmann). Enquanto o buraco negro está absorvendo matéria e energia, a sua área aumenta. A entropia, por sua vez, aumenta proporcionalmente à área, analogamente ao aumento de entropia do universo. Ao final, o buraco negro acabaria por “evaporar”, liberando ainda mais calor para o Universo, que ficaria ainda mais desordenado.

Mas, se escapa uma radiação do buraco negro, será que a informação que havia entrado nele poderia ser transportada para fora por essa mesma emissão? Pelos cálculos realizados por Hawking e seu colaborador Kip Thorne, toda informação engolida pelo buraco negro jamais retornaria ao Universo, mesmo se o buraco negro evaporasse. Em 1997, os dois fizeram uma aposta com o físico norte-americano John Preskill, que defendia a existência de um mecanismo para liberar a informação pela evaporação do buraco negro. Anos depois, Preskill demonstraria que o horizonte do buraco negro apresenta flutuações quânticas que permitem o escape de toda a informação no seu interior. Hawking e Kip Thorne perderam a aposta. Para Hawking, a maior gafe de sua vida foi um dia ter acreditado que os buracos negros destruíam informações.

A luta de Hawking contra a doença é uma expressão particular da luta da vida contra o aumento de entropia. De fato, a vida pode ser vista como uma redução local da entropia: ela cria organismos, que são estruturas ordenadas não repetitivas (um cristal é uma reprodução monótona de unidades mínimas, diferentemente de um organismo, onde há níveis de organização diferentes entre si, em coordenação). Globalmente, a desordem do universo aumenta, mas em “ilhas” nesse vasto oceano entrópico existem formas de organização sempre novas devido à vida e à inteligência. Nessas “ilhas” podemos criar os lares “das pessoas que amamos”.

Em parte por esse motivo, nos últimos tempos Hawking vinha dedicando sua atenção ao papel da vida e da inteligência no Universo e suas implicações para o futuro da humanidade. Houve bastante alarde em torno da sua declaração de que não deveríamos procurar fazer contato com civilizações extraterrestres, mas sim evitar o contato. Ele sugere que a busca por vida extraterrestre deveria antes se concentrar em micróbios. A maioria esmagadora dos astrobiólogos concorda com ele. A posição de Hawking em relação à inteligência extraterrestre baseia-se no princípio da precaução. De fato, na literatura que conjectura há séculos sobre civilizações alienígenas, o outro cósmico é visto como um anjo cósmico até um predador high tech. Hawking propõe como alternativa que o contato com uma civilização extraterrestre pode não ser intencionalmente corrosivo para a humanidade como foram para os povos pré-colombianos as doenças trazidas pelos europeus. Contudo, essa nota de cautela deve ser relativizada, tanto que ele apoiou a Breakthrough Initiative, lançada pelo bilionário russo Yuri Milner em 2015 na presença dos renomados astrônomos Martin Rees, Frank Drake, Geoff Marcy e Pete Worden. Trata-se de um financiamento de 100 milhões de dólares para conduzir a pesquisa científica mais poderosa e abrangente em busca de sinais de vida inteligente fora da Terra.

Hawking também enfatizou a necessidade da humanidade em acelerar a sua caminhada para fora da Terra, sempre tomando os cuidados necessários para evitar danos a formas simples de vida extraterrestre. Segundo ele, a sobrevivência de nossa espécie depende criticamente de nos estabelecermos em outros planetas. Não é coincidência, portanto, que a Breakthrough Initiatives tenha assinado em 2017 um acordo com o ESO (Observatório Europeu do Sul, European Southern Observatory, na sigla em inglês) para adaptar instrumentos do Very Large Telescope no Chile a fim de realizar uma busca de planetas em Alpha Centauri, estrela a mais próxima do Sol. Esses planetas poderiam ser alvos de um eventual lançamento de microssondas. De fato, Alpha Centauri é um sistema estelar triplo, cuja estrela mais próxima de nós, a anã vermelha Proxima Centauri, abriga Proxima Centauri B, um planeta com características muito similares às da Terra e que orbita dentro da zona habitável da estrela, onde pode haver água no estado líquido. Esse planeta está no nosso “quintal cósmico”, a apenas 4,2 anos-luz de nós. Num primeiro momento seria alvo de telescópios, depois de sondas espaciais, e, finalmente, da humanidade.

Ao ser perguntado sobre a morte, Hawking respondeu: “Não tenho medo da morte, mas não tenho pressa de morrer. Há tantas coisas que quero fazer primeiro”. Que possamos ser herdeiros dignos das grandiosas tarefas de Hawking.

*Amâncio Friaça é astrônomo do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (USP). Trabalha em astrobiologia, cosmologia, evolução química do universo e nas relações entre astronomia, cultura e educação. Foi o responsável pela revisão técnica da edição revista de Uma breve história do tempo, lançada em 2015 pela Intrínseca, e Breves respostas para grandes questões, lançado em 2018.

Comentários

2 Respostas para “Os deuses nos roubaram Hawking

  1. Fantástico o trabalho do genial astrofísico Halking, sou fã desde que li o „O Universo numa Casca de noz.

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