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Por que passar um ano no espaço?

28 / novembro / 2017

Por Marcos Pontes*

Scott Kelly a bordo da ISS

Scott Kelly é meu amigo. Trabalhamos juntos como astronautas no Centro Espacial Johnson (JSC), em Houston, Texas, Estados Unidos. Ele foi selecionado para a turma 16 de astronautas em 1996, e eu fui selecionado pela NASA para a turma 17.

Conheci Scott assim que cheguei ao JSC, em agosto de 1998. Como manda a tradição da instituição, no primeiro dia de treinamento tivemos uma reunião com todos os astronautas “mais antigos”. Fizemos nossas apresentações individualmente e tivemos a oportunidade de confraternizar e tirar dúvidas com os mais experientes.

Fui apresentado ao Scott por seu irmão gêmeo, Mark Kelly, também astronauta da turma 16. Eu já conhecia o Mark há alguns anos. Ocorre que, quando Mark estava concluindo seu curso na escola de pilotos de testes da Marinha americana, em 1995, ele foi enviado ao Brasil para voar conosco e avaliar tecnicamente algumas das nossas aeronaves durante um período de duas semanas na Divisão de Ensaios em Voo (AEV), uma organização da Força Aérea Brasileira sediada no Centro Técnico Aeroespacial (CTA), em São José dos Campos, São Paulo.

Marcos Pontes (Fonte)

Na época, eu já era um dos pilotos de testes do Brasil, servindo naquela unidade militar e, por ter voado nos Estados Unidos e por ter bom conhecimento técnico também como engenheiro aeronáutico, fui designado para ser o responsável por Mark durante sua missão no país, inclusive sendo seu instrutor nos voos em nossas aeronaves. Dessa forma, conversamos bastante sobre muitos assuntos, incluindo nosso sonho comum de ir ao espaço.

No ano seguinte, em 1996, fui enviado para o curso de mestrado na escola de pós-graduação da Marinha americana, em Monterey, Califórnia, onde Mark já havia estudado. Realmente, como se pode perceber, nossos caminhos se cruzaram bastante.

Pois bem, agora que eu também havia sido selecionado como astronauta pela NASA, tive o prazer de rever Mark e conhecer seu irmão, Scott Kelly.

Os gêmeos Scott e Mark Kelly (Fonte)

Quem conhece Mark e Scott logo nota que, embora os dois sejam fisicamente muito semelhantes, existem diferenças facilmente observáveis na personalidade dos dois. Mark é mais extrovertido e emotivo; Scott, mais contido e analítico. Entretanto, no que concerne ao experimento realizado pela NASA na última missão de Scott à Estação Espacial Internacional, interessava principalmente o fato de que ambos têm organismos fisiologicamente muito similares, o que permitiu, por comparação, uma avaliação mais precisa dos efeitos da exposição prolongada ao ambiente do espaço sobre os sistemas do corpo humano.

Os irmãos gêmeos, Mark e Scott, foram escolhidos para realizar essa importante missão para o futuro da exploração espacial.

A ideia era simples: enquanto Scott realizava a mais longa missão de permanência no espaço a bordo da EEI, Mark ficaria no solo e ambos seriam fisiologicamente avaliados de forma simultânea para medir a evolução dos efeitos do espaço sobre o corpo de Scott.

A conquista do espaço tem objetivos grandiosos, com missões complexas e viagens interplanetárias de longa duração, o que, inevitavelmente, representará grandes desafios para nosso frágil corpo humano.

Portanto, a missão de Scott e Mark representou um marco no desenvolvimento de novos conhecimentos, novos procedimentos e novos sistemas necessários que levarão a humanidade “para a fronteira final… audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve”.

Scott Kelly permaneceu na EEI por 340 dias. Foi uma missão coberta de sucesso, dificuldades e sacrifícios. Como astronauta especialista de missão, responsável pela manutenção da estação, onde estive por 10 dias, posso afirmar que os desafios e sacrifícios enfrentados por Scott foram imensos.

Scott Kelly durante seu ano abordo da Estação Espacial Internacional

Comecemos pelo fator emocional. O confinamento prolongado em um ambiente relativamente pequeno e longe da família representa um teste constante para o controle emocional. Lembre-se de que todos os tripulantes estão expostos ao estresse causado pela agenda apertada de atividades e pelos riscos inerentes do ambiente espacial, onde erros humanos ou falhas de equipamentos são fatais. Surge a tendência do foco no aspecto técnico das operações e o afastamento das emoções da convivência humana. Isso é ruim. Somos criaturas sociais. A família e as pessoas queridas são importantes para nossa estabilidade emocional. Aqui é onde vemos a importância do processo de seleção rigoroso dos astronautas, assim como das técnicas de preparação e acompanhamento de psicólogos e psiquiatras durante todas as atividades de nossa carreira.

Quanto ao corpo, no espaço temos vários inimigos silenciosos. No início do voo temos os efeitos da microgravidade sobre nosso sistema de equilíbrio e a distribuição de líquidos no corpo. Resultado: mal-estar, ânsia de vômito, dores de cabeça, coriza, aumento de pressão dos olhos, etc. Nada agradável, mas o trabalho tem de continuar. A adaptação inicial dura poucos dias. O corpo encontra uma maneira de ajustar-se à nova situação. O sistema vestibular “desliga” e ficamos desidratados, mas a vida se estabiliza e os sintomas iniciais desaparecem.

Aí surgem os efeitos sobre a musculatura e os ossos e a radiação. Esses vão se acumular enquanto durar o voo. Mesmo com exercícios diários, nossa musculatura tende a “degradar” bastante no espaço. Além disso, perdemos densidade óssea que não pode ser reposta por ingestão de cálcio, por exemplo. O corpo, percebendo a redução do esforço mecânico sobre os ossos “recusa-se” a produzir a mesma quantidade de células ósseas. Resultado: osteoporose. Já a radiação, como sabemos, pode ter efeitos sérios no futuro.

Em termos de sistemas, as alterações experimentadas por “componentes e órgãos” na nova situação acabam por ocasionar alterações no equilíbrio delicado de sistemas importantes como cardiovascular, imunológico e hormonal. Isso significa que, após um voo espacial, podemos ter efeitos sérios que podem perdurar o resto da vida.

Com tudo isso, a pergunta que ouvimos com frequência é: Afinal, vale a pena todo esse sacrifício?

E a resposta é: Sim! Claro que vale a pena! Certamente nossa saúde é prejudicada no processo da missão, mas, afinal, todos temos que ter uma “missão de vida”, uma razão para viver, um propósito maior que nós mesmos, um propósito para a humanidade.

Vista da Aurora Boreal da EEI

Portanto, Scott sacrificou sua saúde por nós, para o futuro da exploração espacial, para o futuro da humanidade; e eu, como ser humano, sou grato pelo seu sacrifício e honrado por poder chamá-lo de “meu amigo”.

 

* Marcos Pontes é o primeiro astronauta brasileiro, da NASA Astronaut Class de 1998.

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