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Abrindo o baú de Elena Ferrante

25 / setembro / 2017

Por Mariana Filgueiras*

Em Frantumaglia: os caminhos de uma escritora, a reunião de artigos, cartas e entrevistas da autora napolitana desvenda bastidores da sua escrita e revela detalhes da trama mais misteriosa que perpassa sua obra: a da própria vida.

Sabe quando você tem em mente poucas notas de um tema, mas não sabe o que é, e se o cantarola, ele acaba se tornando uma canção diferente daquela que o estava atormentando? Ou quando você se lembra de uma esquina, mas não consegue lembrar onde fica?”

Para etiquetar esses fragmentos de memória, caquinhos de origem difícil de definir e que fazem barulho dentro da cabeça, a escritora italiana Elena Ferrante costuma usar uma palavra do dialeto napolitano de que sua mãe gostava muito: frantumaglia.

“Depois que você os ordena um pouco, começa a contar uma história”, afirma a autora, durante uma conversa por carta com seus editores, na qual tentava explicar o significado da expressão que sempre usa para explicar de onde vêm as histórias fabulosas que escreve.

“A frantumaglia é uma paisagem instável, uma massa aérea ou aquática de destroços infinitos que se revelam ao eu, brutalmente, como sua verdadeira e única interioridade. A frantumaglia é o depósito do tempo sem a ordem de uma história, de uma narrativa. A frantumaglia é o efeito da noção de perda, quando temos certeza de que tudo o que nos parece estável logo se unirá a uma paisagem de detritos”, escreve ela, em outra tentativa de definição, dessa vez  durante uma entrevista à publicação italiana Índice.

O domínio das “frantumaglias” é, certamente, o passo mais importante no processo criativo da autora, e em Frantumaglia ela trilha esse caminho junto com os leitores.  

Nesta antologia de cartas, artigos e entrevistas de Elena Ferrante, fenômeno literário que conquista fãs por todo o mundo, ela parece sempre responder a uma questão primeva da literatura: de que maneira é possível transformar suas memórias em histórias? De que forma pode a vida virar linguagem?

A resposta está sempre rondando o uso que a autora faz dessas lembranças fugidias. Em todo tipo de texto, aliás. Em 1994, sua editora italiana, Edizioni e/o, encomendou-lhe um pequeno texto para celebrar os 15 anos da empresa. Como a própria Ferrante explicou numa carta enviada junto com o texto, “eu poderia inundar vocês de lembranças, pequenos pensamentos, esboços universalizantes. Desta vez contentei-me em começar por uma muda de alcaparras”. Lá vinha ela com a estratégia das frantumaglias: Ferrante tomou da infância a memória inutilizada de uma alcaparreira que sempre florescia numa das paredes de sua casa, a despeito das condições adversas. E o resultado ficou tão espirituoso que motivaria a mesma Edizioni e/o a reunir outros textos esparsos da autora em 2003 — para produzir o livro que daria origem a Frantumaglia: os caminhos de uma escritora.

 

O hábito de anotar sonhos desde menina

Além de desvendar os recursos ferrantinos de fabulação, o livro também esclarece muito do seu processo de escrita, que tem início de maneira informal, como conta em outra carta da coletânea. Elena Ferrante tem, desde menina, o hábito de anotar sonhos. “É um exercício que aconselho a todos. Sujeitar a experiência onírica à lógica da vigília é um desafio extremo de escrita. Um sonho tem o mérito de mostrar claramente que reproduzi-lo com exatidão é uma batalha sempre perdida.”

Ferrante escreve em fluxos de 50 a 100 páginas, e tudo acontece no processo da escrita, sem esquemas estruturais de cenas. Só então para e relê o que fez, reescrevendo. Para a autora, são a palavra, a sintaxe e o estilo os instrumentos que determinam a sinceridade dos seus romances: “Em geral, o quesito mais urgente para um escritor parece ser: de quais experiências sei que posso ser a voz, o que sinto que sou capaz de contar? Mas não é assim. É mais premente perguntar a si mesmo: qual é a palavra, o ritmo da frase, a tonalidade do período mais adequado às coisas que eu sei? Parecem perguntas formais, de estilo; em suma, secundárias. No entanto, estou convencida de que, sem as palavras certas, sem um longo adestramento para combiná-las, nada vivo ou verdadeiro surge.”

Os textos reunidos em Frantumaglia também abordam os processos de edição, inclusive os de transposição para imagens. Como fica claro na lista de sugestões que faz por carta ao diretor do filme Amor Molesto, Mario Martone, inspirado no seu primeiro romance, Um amor incômodo. Assim que o roteiro do filme fica pronto, Mario manda o material para Ferrante, que o devolve com anotações não menos literárias. Sobre a cena que se passa num hotel, no livro, e o diretor mudou para uma estância termal, pondera Ferrante: “A mudança de ambiente não me desagrada. Só receio, como já disse, que se perca uma característica da personagem Delia: o corpo dela se bloqueou em uma espécie de avesso programático da figura sexualmente densa que ela atribuiu à mãe. Ou a cena comunica o sofrimento do corpo de Delia entre repulsa e desejo e, ao mesmo tempo, sua humanidade sofrida, ou corre o risco de ser um mimo erótico dado ao espectador.”

 

Frantumaglia é para todos que amam literatura

Mas Frantumaglia: os caminhos de uma escritora não é um livro apenas para iniciados. Mesmo quem nunca leu um livro de Elena Ferrante ficará imerso na leitura das cartas, artigos e entrevistas da autora. Por um motivo curioso: é nesses textos que surge a narrativa que perpassa todos os seus romances, uma trama tão instigante quanto as que envolvem suas personagens: a da sua própria vida.

Cercada de mistérios, a identidade da escritora napolitana ganha muito mais contornos com a reunião de seus textos. Seu mapa de referências, por exemplo, fica explícito. Saber que Ferrante bebeu muito na literatura da italiana Elsa Morante, ou no livro The Middle Years, a autobiografia do escritor Henry James, revela seu caráter obsessivo na construção biográfica das personagens. E de si mesma: ao entrar no universo de Elena Ferrante pela porta de Frantumaglia, tem-se a chance de ler, antes de toda sua ficção, a primeira carta que a escritora enviou a seus editores explicando a decisão de permanecer anônima. Um pacto profundo de subjugação do ego, em caráter irrevogável, e que até hoje “a aprisiona como uma casca à maçã”.

“Quero apenas confidenciar que essa é uma pequena aposta comigo mesma, com minhas convicções. Acredito que, após terem sido escritos, os livros não precisam de autores para nada. Exemplos não faltam. Adoro aqueles volumes misteriosos, que não têm um autor definido, mas que têm intensa vida própria. Parecem uma espécie de milagre noturno, como, quando criança, eu esperava os presentes da Befana (personagem folclórica italiana), ia para a cama muito agitada e, de manhã, os presentes estavam lá. Os verdadeiros milagres são aqueles que ninguém sabe quem fez, sejam eles os ínfimos portentos dos espíritos secretos da casa ou os grandes prodígios que nos deixam boquiabertos. Ainda tenho esse desejo infantil de encantos, sejam pequenos ou grandes, e ainda acredito neles.”

*Mariana Filgueiras é jornalista cultural e mestranda em Literatura na Universidade Federal Fluminense (UFF).

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