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Nem tudo é o que parece ser

20 / junho / 2017

Por Flávio Izhaki*

Que tal tentar iniciar a conversa com um caso? Uma amiga telefona e conta que o bebê que está para nascer foi diagnosticado com síndrome de Down. Na mesma semana, enquanto você espera o Uber, o porteiro do seu prédio lhe mostra a foto do filho sorrindo e você percebe que ele também tem Down. De repente, você pode pensar que está todo mundo tendo filho com Down, então você também terá. Porém, como é uma doença genética e você não tem nenhuma ligação de sangue com aquelas duas pessoas (sua amiga e o porteiro), a chance de seu filho ter essa condição segue a mesma hoje do que era na semana anterior.

Um caso simples como esse poderia ter sido o início da observação que levou Daniel Kahneman e Amos Tversky a estudarem como a mente humana, supostamente racional, chega a conclusões que nem sempre são racionais. Segundo os estudos de Kahneman e Tversky, as pessoas muitas vezes apoiam suas decisões em uma narrativa quando seria natural supor que fariam isso amparados em dados e porcentagens.

Michael Lewis tem um jeito peculiar de escolher as histórias que vai contar. O leitor brasileiro que gostou de Moneyball (sobre as imperfeições no mercado de jogadores de beisebol) e Flash Boys (a revolução da velocidade no mercado de capitais), ambos publicados pela Intrínseca, pode pegar O projeto desfazer na livraria e perguntar sobre o que afinal se trata esse novo livro de título enigmático.

A teoria que intitula o livro fala de como, ao tentar refazer as situações que levaram a um fato, a nossa mente se engana ao pensar que uma situação específica pode ser mais impactante que outras, mesmo quando não é, e de como isso pode ser manipulado por uma narrativa. O título do livro não remete apenas à teoria, mas como de um encontro fortuito entre dois brilhantes cientistas nasceram teorias de economia comportamental e psicologia que impactariam o mundo em áreas tão díspares como medicina, política, economia, esporte e militar.

Desta vez a história quase veio até Lewis. Um artigo publicado depois de Moneyball falava sobre a teoria desses dois psicólogos israelenses e de como ela explicava o livro (apesar de Lewis não conhecê-la). Por coincidência, Danny Kahneman mora há alguns quilômetros da casa de Lewis, enquanto o filho de Tversky foi seu aluno na Universidade da Califórnia.

O que sustenta o arcabouço de O projeto desfazer, assim como nos livros anteriores de Lewis, é a magistral capacidade de dar empatia aos personagens transpostos da vida real. A nova obra fala das teorias desenvolvidas pelos cientistas, mas o que dá sabor ao livro é a estranha amizade entre dois gênios tão diferentes, o background de Israel dos anos 1960 e 1970 que estimulava novas descobertas, de preferência com implicações práticas, ou, nas palavras de Lewis em entrevistas, um pré Vale do Silício.

Danny Kahneman é um filho do Holocausto, introvertido, inseguro, casmurro, enquanto Amos Tversky é extrovertido, o centro das atenções de qualquer festa, atlético, paraquedista do Exército israelense. Intelectualmente, Danny sempre tinha a certeza de estar errado. Amos, a de estar certo.

Com a habilidade narrativa de Michael Lewis, mesmo num livro cuja a temática não é simples, a impressão que temos ao ler O projeto desfazer é de uma grande conversa de décadas entre melhores amigos, um bromance com risadas, tensão, discórdia, avanços, alegrias e decepções. Mas não foram amigos quaisquer, e sim cientistas inovadores que, de certa forma, mudaram o mundo.

Kahneman, um psicólogo, terminou recebendo o Prêmio Nobel de Economia, o que Tversky certamente teria alcançado também se não tivesse morrido prematuramente em 1996. Mas aqui cometo um erro bem típico e que os dois se regozijariam ao apontar: uma previsão é apenas um julgamento que envolve incertezas.

*Flávio Izhaki é autor de três romances. O mais recente, Tentativas de capturar o ar (Rocco), foi lançado em 2016.

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