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Romance inédito de Elena Ferrante chega às livrarias em março

24 / fevereiro / 2017

Com narrativas poderosas, a misteriosa escritora italiana Elena Ferrante é uma das principais vozes femininas da atualidade. Os volumes da série Napolitana e as obras A filha perdida e Uma noite na praia conquistaram leitores em todo o mundo e já somam mais de 5 milhões de exemplares vendidos. Primeiro romance da autora, lançado originalmente em 2012, o delicado e perverso Um amor incômodo chega às livrarias em 20 de março.

Na obra, Delia retorna a sua cidade natal para enterrar a mãe, Amalia, encontrada morta numa praia em circunstâncias suspeitas: a humilde costureira que se acostumou a esconder a beleza com peças simples e sem graça estava vestindo nada além de um sutiã caro e sofisticado no momento da morte.

Uma série de telefonemas e encontros estranhos leva a revelações perturbadoras a respeito dos últimos dias de Amalia e impele Delia a buscar a verdade por trás do trágico acontecimento. Avançando pelas ruas caóticas e sufocantes da Nápoles de sua infância, a filha vai confrontar os três homens que figuraram de forma proeminente no passado da mãe: o irmão irascível de Amalia, conhecido por lançar insultos indistintamente a conhecidos e estranhos; o ex-marido, pai de Delia, um pintor medíocre que não se importava em desrespeitar a esposa em público; e Caserta, uma figura sombria e lasciva, cujo casamento nunca o impediu de cortejar outras mulheres.

Na mistura desorientadora de fantasia e realidade suscitada pelos sentimentos que vêm à tona nessa investigação, Delia se vê obrigada a reviver um passado cuja crueza ganha contornos vívidos na prosa refinada de Elena Ferrante. Uma história pungente sobre mãe e filha unidas por um complicado nó de mentiras e emoções.

 

>> Leia um trecho de Um amor incômodo:

Minha mãe se afogou na noite de 23 de maio, dia do meu aniversário, no mar de um lugar chamado Spaccavento, a poucos quilômetros de Minturno. Precisamente naquela área, no final dos anos cinquenta, quando meu pai ainda morava conosco, alugávamos no verão um quarto em uma casa de temporada e passávamos o mês de julho dormindo os cinco em poucos metros quadrados escaldantes. Toda manhã, nós, meninas, comíamos ovos crus, partíamos rumo à praia por trilhas de terra e areia ladeadas por juncos altos e íamos tomar banho de mar. Na noite em que minha mãe morreu, a dona da casa, que se chamava Rosa e já tinha mais de setenta anos, ouviu alguém bater à porta, mas não abriu temendo ladrões e assassinos.

Minha mãe pegara o trem para Roma dois dias antes, em 21 de maio, mas nunca havia chegado. Nos últimos tempos, vinha ficar comigo durante alguns dias pelo menos uma vez por mês. Eu não gostava de ouvi-la pela casa. Ela acordava ao raiar do dia e, seguindo seus hábitos, lustrava de cima a baixo a cozinha e a sala de estar. Eu tentava voltar a dormir, mas não conseguia: enrijecida entre os lençóis, eu tinha a impressão de que, enquanto ela se ocupava, meu corpo era transformado no de uma menina enrugada. Quando chegava com o café, eu me encolhia em um canto para evitar que ela tocasse em mim ao se sentar na beirada da cama. A sociabilidade dela me incomodava: saía para fazer compras e se enturmava com os comerciantes com os quais, em dez anos, eu não havia trocado mais do que duas palavras; ia passear pela cidade com alguns conhecidos ocasionais; fazia amizade com meus amigos, aos quais contava histórias de sua vida, sempre as mesmas. Com ela, eu só sabia ser contida e insincera.

Voltava para Nápoles ao meu primeiro sinal de intolerância. Recolhia suas coisas, dava uma última arrumada na casa e prometia que logo retornaria. Eu andava pelos cômodos rearrumando ao meu gosto tudo o que ela havia disposto ao gosto dela. Retornava o saleiro ao compartimento no qual eu o guardava havia anos, devolvia o detergente ao lugar que sempre me pareceu mais adequado, bagunçava sua ordem dentro das minhas gavetas, devolvia ao caos o aposento onde eu trabalhava. Também o cheiro da sua presença — um perfume que deixava a casa com uma sensação de inquietude — passava depois de um tempo, como o de uma rápida chuva de verão.

Muitas vezes, ela perdia o trem. Geralmente chegava no trem posterior, ou até mesmo no dia seguinte, mas eu não conseguia me acostumar a isso e ficava preocupada do mesmo jeito. Ligava para ela, aflita. Quando finalmente ouvia sua voz, a repreendia com certa dureza: como assim não havia partido, por que não me avisara? Ela se justificava sem empenho, questionando em tom divertido o que eu achava que poderia acontecer na sua idade. “De tudo”, eu respondia. Sempre imaginei uma trama de emboscadas tecida de propósito para fazê-la sumir do mundo. Quando criança, enquanto ela estava fora, eu a esperava na cozinha, atrás da janela. Ficava ansiosa esperando ela reaparecer no fim da rua, como uma figura em uma bola de cristal. Eu respirava junto ao vidro, embaçando-o, para não ver a rua sem ela. Se demorava, a ansiedade se tornava tão irrefreável que transbordava em tremores no meu corpo. Então, eu fugia para um quartinho de despejo sem janelas e sem luz elétrica, bem ao lado do quarto dela e do meu pai, fechava a porta e ficava no escuro, chorando em silêncio. O cômodo funcionava como um antídoto eficaz. Inspirava-me um terror que mantinha sob controle a ansiedade em relação ao destino da minha mãe. No breu sufocante por causa do cheiro do pesticida eu era agredida por formas coloridas que lambiam por poucos segundos as minhas pupilas, deixando-me sem fôlego. “Quando voltar, mato você”, eu pensava, como se tivesse sido ela a me deixar fechada ali dentro. Mas, assim que eu ouvia sua voz no corredor, esgueirava-me para fora rapidamente e ficava rodeando-a com indiferença. Voltou-me à mente aquele quartinho de despejo quando descobri que ela partira no horário correto, mas ainda não havia chegado.

À noite, recebi o primeiro telefonema. Minha mãe disse com um tom tranquilo que não podia me contar nada: havia um homem com ela que a impedia de fazer isso. Depois, começou a rir e desligou. Na hora, prevaleceu a perplexidade. Achei que estava brincando e me resignei a esperar por um segundo telefonema. Deixei as horas passarem em conjecturas, sentada inutilmente ao lado do telefone. Só após a meia-noite procurei um amigo policial, que foi muito gentil: disse para eu não me preocupar, ele cuidaria de tudo. Mas a noite passou sem notícias da minha mãe. De concreto, havia apenas sua partida: a sra. De Riso, uma vizinha viúva da mesma idade dela com a qual minha mãe alternava havia quinze anos períodos de boa vizinhança e de inimizade, disse-me ao telefone que a acompanhara à estação. Enquanto minha mãe estava na fila da bilheteria, a viúva comprara para ela uma garrafa de água mineral e uma revista. O trem estava lotado, mas, mesmo assim, minha mãe encontrara um lugar à janela em um vagão abarrotado de militares de licença. Despediram-se, recomendando-se que se cuidassem. Como ela estava vestida? Como de costume, com as roupas que usava havia anos: saia e blazer azul-escuros, uma bolsinha de couro preto, velhos sapatos de salto médio, uma maleta surrada.

Às sete da manhã, minha mãe telefonou outra vez. Embora eu a tivesse bombardeado de perguntas (“Onde você está? De onde está ligando? Quem está com você?”), ela se limitou a desfiar em voz muito alta uma série de expressões obscenas em dialeto, enunciando-as com prazer. Depois desligou. Aquelas obscenidades me causaram uma regressão desorientadora. Liguei novamente para o meu amigo, surpreendendo-o com uma mistura confusa de italiano e expressões dialetais. Ele quis saber se minha mãe andava particularmente deprimida nos últimos tempos. Eu não sabia. Admiti que ela não era mais como antigamente: tranquila, pacatamente divertida. Ria sem motivo, falava demais; porém, os idosos muitas vezes fazem isso. Meu amigo concordou: acontecia com frequência que os velhos, ao primeiro sinal de calor, fizessem coisas estranhas. Não havia motivo para preocupação. Mas eu continuei a me preocupar e percorri a cidade de cima a baixo, procurando sobretudo nos lugares em que eu sabia que ela gostava de passear.

O terceiro telefonema foi às dez da noite. Minha mãe falou confusamente de um homem que a seguia para levá-la embora enrolada em um tapete. Pediu que eu fosse correndo ajudá-la. Supliquei que me dissesse onde estava. Ela mudou de tom, respondeu que era melhor não. “Tranque-se, não abra a porta para ninguém”, alertou. Aquele homem queria fazer mal a mim também. Depois, acrescentou: “Vá dormir. Agora vou tomar banho.” Não se ouviu mais nada.

No dia seguinte, dois rapazes viram o corpo de minha mãe boiando a poucos metros da praia. Vestia apenas o sutiã. A mala não foi encontrada. O tailleur azul-escuro não foi encontrado. Não foram encontrados nem mesmo a calcinha, as meias, os sapatos, a bolsinha com os documentos. Mas, no dedo, estavam o anel de noivado e a aliança. Nas orelhas, os brincos que meu pai lhe dera de presente meio século antes.

Vi o corpo e, diante daquele objeto lívido, senti que talvez devesse me agarrar a ele para não acabar sei lá onde. Não fora violado. Apresentava apenas algumas equimoses causadas pelas ondas, bastante suaves, aliás, que o empurraram durante toda a noite contra algumas rochas na superfície da água. Em volta dos olhos, pareceu-me haver traços de maquiagem pesada. Observei longamente, com incômodo, as pernas morenas, extraordinariamente jovens para uma mulher de sessenta e três anos. Com o mesmo incômodo, percebi que o sutiã nada tinha em comum com aqueles bastante gastos que ela costumava usar. As taças eram de renda fina e mostravam os mamilos. Eram unidas por três Vs bordados, a assinatura da loja das irmãs Vossi, uma marca napolitana cara de lingerie para senhoras. Quando o devolveram para mim, com os brincos e os anéis, cheirei-o por muito tempo. Tinha o forte aroma de tecido novo. [Leia +]

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